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ARTIGO ORIGINAL

Uso precoce e tardio de dopamina após isquemia miocárdica

Ademar R. Souza0; Marcos A. M. Silva0; Rubens R. Andrade0; Reinaldo A. Oliveira0; Antônio S. Martins0

DOI: 10.1590/S0102-76382004000300009

INTRODUÇÃO

Desde o início da moderna era da cirurgia cardíaca, a proteção miocárdica tem sido objeto de inúmeras pesquisas, evoluindo desde o "clamp and go", preconizado por Cooley, até os métodos sofisticados de Hearse, Buckberg e Braile [1,2].

Os pacientes eleitos para cirurgia cardíaca têm sofrido consideráveis mudanças na ultima década, tornando-se mais idosos, com pior função ventricular e maior comorbidade [3-5]. Estes pacientes acabam necessitando, ao final da cirurgia, de suporte de drogas vasoativas [6-11] ou até mesmo de assistência circulatória prolongada e balão intra-aórtico. KOMAI et al. [11] e LASAR et al. [12] relataram os efeitos deletérios do uso de inotrópicos neste tipo de paciente, principalmente quando seu uso se fazia precoce [13], ou seja, logo após a interrupção do pinçamento aórtico. Desde então, este conceito foi pouco explorado tanto clínica como experimentalmente. Diversas drogas inotrópicas têm sido relatadas na literatura, com resultados variáveis, porém, em nosso meio, a dopamina continua sendo a droga mais utilizada em pós-operatório de cirurgia cardíaca, sendo em grande parte devido aos seus efeitos amplamente conhecidos e custo reduzido.

O objetivo do presente estudo é avaliar as repercussões na função ventricular esquerda, em modelo experimental, do uso precoce e tardio da dopamina.

MÉTODO

Foram utilizados 60 coelhos da raça Norfolk-2000, variante Botucatu, de ambos os sexos, com peso variando entre 2000 e 3000 gramas, os quais foram fornecidos pelo biotério do campus de Botucatu - UNESP.

Em cada experimento foram utilizados dois coelhos, sendo um denominado suporte e o outro doador (o qual forneceu o coração isolado). A distribuição dos animais, nos diversos grupos experimentais, foi realizada mediante sorteio. O animal suporte foi anestesiado com pentobarbital (30mg/kg EV), sendo aplicado lentamente pela veia auricular. Antes da esternotomia, caso fosse necessário, era aplicado mais 7,5mg/kg em bolus. A anestesia foi mantida através de doses de reforço (15mg/kg) a cada 60 minutos.

Após tricotomia da região cervical, foi feita uma incisão de 3,5cm no pescoço, interessando pele e subcutâneo. A veia jugular externa direita foi dissecada e canulada com cateter de polivinil. Foi realizada heparinização sistêmica (5.000 UI de heparina em bolus com doses de reforço de 2.500 UI EV a cada 45 minutos) e, a seguir, dissecção e canulação da artéria carótida direita. Colocação do animal em assistência ventilatória através de dissecção e canulação da traquéia com tubo de polivinil. Para a assistência ventilatória foi utilizado o sistema descrito por MARTINS [14], com enriquecimento de oxigênio.

O animal doador foi anestesiado do mesmo modo que o animal suporte. A heparinização sistêmica (5.000 UI de heparina em bolus) foi feita juntamente com a anestesia. Foi feita tricotomia da região torácica anterior e logo após o animal colocado em goteira de Claude Bernard. Realização de toracotomia médio-esternal: incisão de 10 cm, interessando pele e subcutâneo, com lâmina 11, iniciada em região cervical e terminada 2cm abaixo do xifóide. A secção longitudinal do osso esterno foi feita com tesoura de Mayo. Colocação de afastador ortostático, divulsão romba das pleuras e dissecção romba do timo. Pinçamento da aorta com Halsted e retirada do coração do mediastino.

Foi feita uma incisão longitudinal no pericárdio (com tesoura de Lexter) e uma na aorta (com lâmina 11). A aorta foi canulada (cânula Braileâ para retroplegia) e reparada com fio de algodão 2-0. Realização de atriotomia esquerda e colocação do balão intraventricular. Colocação do coração em cuba com solução de Ringer lactato (35-37ºC). O sistema modificado de Langendorff foi preenchido com o sangue do coração do coelho doador e solução de Ringer lactado.

Foi feita a condução dos corações para o sistema modificado de perfusão de Langendorff e conexão com a linha de perfusão do aparelho. As câmaras do circuito foram completadas com o sangue restante do animal doador.

O sistema (Figura 1) era constituído por circuito arterial que, mediante bomba peristáltica (modelo 1250 A, Harvard Apparatus®), retirava o sangue do animal suporte e o infundia no coração do doador. O conteúdo do que era infundido no coração do doador caía na cuba coletora e era aspirado por bomba peristáltica (em velocidade igual à da infusora) retornando à veia jugular do animal suporte. O sangue era recirculado continuamente, visando a manutenção de uma pressão constante de perfusão de 70mmHg. Para circulação de água aquecida na cuba coletora, utilizou-se unidade termo-circuladora para cardioplegia da Macchi®.



O fluxo das bombas era aferido durante o experimento, mediante gotejamento em cálice milimetrado (Vidrolabor®) pelo período de um minuto. A taxa do fluxo sanguíneo coronariano foi medida diretamente através de coleção cronometrada.

De padronização em nosso laboratório, no ápice do ventrículo esquerdo, o fio condutor do balão foi passado e, sob leve tração, foi colocado no ventrículo esquerdo. A sutura em bolsa foi ajustada para evitar o prolapso do balão para o átrio esquerdo. O balão foi conectado a um transdutor de pressão para medidas de volume-pressão do ventrículo esquerdo. O ajuste do volume do balão intraventricular foi feito através da infusão de solução salina dentro do balão (por meio de uma seringa de 1 ml - para maior precisão), determinando-se qual o maior volume que não elevasse a pressão diastólica acima de zero. Este valor foi denominado de V0.

O eletrodo do termômetro foi colocado na linha arterial e no ventrículo direito, de forma a se verificar se a temperatura estava ao redor de 37ºC.

Após o início da perfusão no sistema, aguardou-se um período de 20 minutos para a estabilização do coração isolado. Nesta fase de estabilização, através de um eletrodo temporário de marcapasso (modelo IMCâ, com 5V de saída e 1,5 mseg de largura de pulso), o coração recebeu estimulação elétrica artificial no ventrículo direito de 120 estímulos por minuto. Realizaram-se elevações de 0,1ml no balão intraventricular, de modo seqüencial, até obter-se a pressão diastólica de 25mmHg (volume diastólico final aproximado de um coração de coelho normal durante trabalho externo). Utilizando-se o polígrafo Biopac 100® e os transdutores próprios do aparelho, os atributos hemodinâmicos foram aferidos em cada momento do experimento. Após a aquisição dos dados iniciais, o fluido do balão de látex foi ajustado para obter-se uma pressão diastólica final de 0 mmHg.

Três grupos foram constituídos:

 Grupo 1: Grupo controle, sem dopamina.
 Grupo 2: Grupo com dopamina precoce (Dopa P).
 Grupo 3: Grupo com dopamina tardia (Dopa T).

Todos os grupos realizaram as seguintes etapas (Figura 2): período de estabilização (20 minutos) ð período de isquemia (30 minutos) ð período de reperfusão (20 minutos).



A dopamina foi utilizada na dose de 10mg/kg/min. No grupo Dopa P, sua administração iniciou-se logo após o período de isquemia do coração isolado; e no grupo Dopa T, após o processo de reperfusão (Figura 2).

No início da reperfusão (interrupção do pinçamento aórtico) e 20 minutos após o início desta, foi medido o fluxo coronariano, lesão miocárdica (MDA - Dialdeído Malônico), complacência ventricular esquerda (balão intraventricular) e performance miocárdica (avaliada pela dp/dt). A análise estatística foi realizada pela análise da variância (fatorial ANOVA) e pelo teste estatístico de Tukey. As diferenças foram consideradas significantes com um nível de p menor do que 0,05.

RESULTADOS

As variáveis fluxo coronário, dp/dt+ e dp/dt- foram significativamente maiores no grupo Dopa T. Não houve diferença nas demais variáveis (Tabela 1).



COMENTÁRIOS

Os modelos experimentais constituem a base da pesquisa atendendo aos ditames éticos, contudo a transposição destes resultados para a esfera clínica deve ser feita com cautela. O modelo de coração isolado é de uso consagrado na literatura, sendo utilizado em pesquisas de proteção miocárdica. O modelo de animal suporte permite perfundir o coração isolado com sangue, o que leva a obtenção de resultados mais fisiológicos [14-16]. O uso do coelho como animal de experimentação, permite uma manipulação cirúrgica mais fácil e maior confiabilidade nos resultados, pois o coelho apresenta similaridade ao ser humano quanto à cinética do cálcio, composição das miosinas e resposta à injúria isquêmica.

Apesar das inúmeras drogas vasoativas existentes na literatura, a dopamina continua sendo a mais utilizada em nosso meio, em grande parte pela fácil manipulação, conhecimento por parte dos anestesistas e intensivistas e no custo reduzido [17]. Quando um paciente necessita do uso desta droga ao apresentar baixo débito, a dose padrão é de 10µg/kg/minuto, razão pela qual adotamos esta dose no experimento.

Avaliamos a função sistólica por meio das variáveis: dp/dt+ e estresse desenvolvido sistólico. A primeira derivada da pressão intraventricular na sua deflexão positiva mostrou-se significativamente maior no grupo Dopa T em relação ao grupo Dopa P e CG. Contudo, não obtivemos diferença estatística significativa quanto ao estresse sistólico desenvolvido. Este último índice baseia-se nas relações do estresse e deformação, avaliando o músculo cardíaco em si. A dp/td+ baseia-se nas relações pressão e volume, avaliando o desempenho ventricular esquerdo como uma câmara [18]. Assim, os resultados aqui encontrados não são conflitantes, mas complementares, pois o uso precoce de dopamina afetou o desempenho do ventrículo esquerdo como uma câmara, sendo necessário recorrer aos índices de função diastólica para corroborar este achado. A dp/dt- avalia a fase ativa da diástole, portanto intimamente relacionada à cinética do cálcio. Encontramos pior desempenho no grupo Dopa P, ou seja, o uso precoce de dopamina afetou a fase ativa do relaxamento, o que pode explicar o pior desempenho sistólico quando avaliamos sob perspectiva de câmara [18].

O outro índice de avaliação diastólica, o Delta V, avalia a capacidade volumétrica do ventrículo esquerdo, sendo expressão indireta da função diastólica. Este índice reflete o edema miocárdico, comum neste modelo experimental e nos processos de reperfusão. Foi igual nos três grupos, denotando o mesmo edema e corroborando que a ação deletéria da dopamina precoce se faz na fase ativa do relaxamento.

O malonil dialdeido (MDA) é produto da peroxidação, sendo indicativo de lesão isquêmica e reperfusão mediada por radicais livres [19,20]. Não encontramos diferença nos três grupos, denotando que a ação deletéria do uso precoce da dopamina não se faz por esta via, permanecendo ainda não elucidada.

CONCLUSÕES

O presente estudo demonstrou que nas condições experimentais delineadas, com as variáveis utilizadas, o uso precoce de dopamina foi deletério para a função ventricular esquerda.

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Article receive on quarta-feira, 1 de outubro de 2003

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