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RELATO DE CASO

Correção de ectopia cordis e onfalocele em recém-nascido: relato de caso operado com sucesso

Marcelo Biscegli Jatene; Ramez Anbar; Patrícia Marques de OLIVEIRA; Deipara Monteiro Abellan

DOI: 10.1590/S0102-76382004000400013

RESUMO

Recém-nascido, sexo feminino, com diagnóstico de ectopia cordis e onfalocele; realizada cesariana e com 6 horas correção da parede abdominal e da ectopia cordis. Evoluiu com grave instabilidade hemodinâmica, sendo reoperada para liberação dos pontos do esterno. Apresentou melhora progressiva, extubação no 15º e alta no 40º dia. Aos oito meses foi reinternada para fechamento do esterno e reconstrução abdominal (neoonfaloplastia). Houve boa evolução, com alta no 5º dia. Com 4 anos de evolução, encontra-se assintomática, sem medicações ou restrições físicas.

ABSTRACT

Female neonate diagnosed with ectopia cordis and onphalocele was submitted to an operation at 6 hours of age to reconstruct the abdominal wall and place the heart in the left pleural space. After initial hemodinamic instability the patient was reoperated to open the sternum; with progressive recovery, extubation ocurred on 15th postoperative day and she was discharged in 40th day. With 8 months of life a new operation was successfully performed to close the sternum and reconstruct the abdominal wall. After four years, the child is asymptomatic with no necessity of medications or physical restrictions.
INTRODUÇÃO

O diagnóstico pré-natal de defeitos cardíacos e da parede tóraco-abdominal vem se constituindo em importante arma na programação do parto e dos tratamentos perinatais. Dentre estes, a síndrome de Cantrell (ectopia cordis e má formação da parede abdominal) constitui-se em um dos exemplos. Apesar de baixa prevalência, representa um desafio ao cirurgião, pela variedade e severidade das más-formações cardíacas e abdominais e alta mortalidade relatada [1-3].

Descrevemos no presente artigo a evolução satisfatória de uma criança cujo diagnóstico foi realizado intra-útero e as malormações precocemente corrigidas.

RELATO DO CASO

Recém-nascido do sexo feminino, branco, terceira gestação de mãe de 34 anos. Com 26 semanas diagnosticada ectopia cordis, comunicação interventricular (CIV) muscular e onfalocele. Com 38 semanas realizado parto cesariana; a criança nasceu com 3095g e Apgar 8 e 10.

O exame físico revelou área cardíaca exposta, com os ventrículos totalmente excluídos da cavidade torácica, sem cobertura com pericárdio, que servia de revestimento da cavidade e presença de onfalocele. Com seis horas de vida, a criança foi submetida à reconstrução da parede abdominal com tela de polipropileno, retalho peritonial e cutâneo. Prosseguiu-se, então, à correção da ectopia cordis; observou-se agenesia dos dois terços distais do esterno, ficando a porção herniada em contato com o peritônio, com pequena constrição na porção basal dos ventrículos. Optou-se por ressecar o pericárdio à esquerda e liberar o coração, posicionando-o no hemitórax esquerdo; a porção anterior do diafragma foi reparada com pontos separados, o esterno foi fixado com fios de aço e realizado fechamento da pele da região torácica e abdominal.

Evoluiu com grave instabilidade hemodinâmica, má perfusão periférica e hipotensão, necessitando uso de dopamina, dobutamina e adrenalina, sem melhora. Realizado ecocardiograma que revelou desempenho sistólico biventricular preservado e sinais de restrição diastólica. A criança foi reoperada 12 horas após, com liberação dos pontos de fixação esternal. Optou-se por manter o coração no hemitórax esquerdo e fechamento do subcutâneo e pele.

Manteve-se hemodinamicamente instável, com altas doses de inotrópicos, retiradas no sétimo dia de vida. A extubação ocorreu no 15º dia, alta da UTI com 33 e alta hospitalar com 40 dias, em uso de oxigênio, suspenso aos três meses de idade.

Aos oito meses foi reinternada para correção dos defeitos residuais. Apresentava instabilidade esternal por deiscência mecânica, com cavalgamento da porção esternal direita sobre a esquerda e abaulamento abdominal (Figura 1).



Durante a operação, observou-se deiscência da fixação da prótese de polipropileno; procedeu-se ao fechamento do esterno com reforço subesternal e plicatura diafragmática e a reconstrução da parede abdominal com retalhos cutâneos tóraco-abdominais; o excesso de pele foi retirado (Figura 2). A criança apresentou boa evolução, sendo extubada no 1º dia de pós-operatório (PO); recebeu alta hospitalar no 5º PO. O ecocardiograma mostrou CIV muscular fechada e comunicação interatrial (CIA) tipo ostium secundum, sem repercussão clínica.



Permanece em acompanhamento clínico, com 4 anos de evolução, assintomática, sem medicações ou restrições físicas, sem distúrbios gastrointestinais, desenvolvimento neurológico, psicomotor, escolaridade e aprendizado normais para a idade. Ao ecocardiograma, persiste com CIA com diâmetro de 8mm, em acompanhamento periódico.

COMENTÁRIOS

Pentalogia de Cantrell refere-se a uma síndrome congênita, inicialmente descrita por CANTRELL et al. [1], em 1958, e caracterizada por dois defeitos principais: ectopia cordis e má formação da parede abdominal, associados a defeitos de três estruturas interpostas - terço distal do esterno, porção anterior do diafragma e pericárdio diafragmático.

Ectopia cordis pode ser definida como defeito congênito raro, relacionado à malformação da parede anterior do tórax, com localização extratorácica do coração. Dependendo da posição onde o coração é encontrado, pode ser categorizada em quatro tipos: cervical, torácica, tóraco-abdominal e abdominal [2,3], sendo a onfalocele a má formação da parede abdominal mais encontrada. A formação das paredes torácica e abdominal está completa na nona semana e do coração com oito semanas [1]. Qualquer falha neste processo pode resultar no aparecimento da síndrome de Cantrell [4]. As anomalias associadas e já descritas na literatura são principalmente do sistema cardiovascular, respiratório, nervoso central, trato gastrointestinal e genitourinário [1,4].

A prevalência desta doença é baixa (especula-se que atinja um a cada 65.000 nascidos vivos), havendo, na literatura mundial, aproximadamente 900 casos descritos [5]. A criança deste relato é do sexo feminino, sendo que a mesma tem dois irmãos, ambos normais.

O prognóstico é reservado e depende do grau de malformação intracardíaca e de malformações associadas, além do grau de exposição do coração. A maioria das crianças falece nas primeiras horas ou dias de vida. Tentativas de correção cirúrgica já foram amplamente realizadas, recomendando-se cobertura imediata do coração e conteúdo abdominais expostos com prótese de silastic, além da avaliação completa e correção dos defeitos intracardíacos antes do fechamento da parede abdominal [6]. Tal procedimento muitas vezes leva à distorção dos grandes vasos da base e à compressão do coração, resultando em baixo débito cardíaco [6].

A conduta obstétrica, havendo suspeita de pentalogia de Cantrell, deve incluir a procura cuidadosa de anomalias associadas, especialmente intracardíacas e a solicitação do cariótipo fetal. A interrupção da gestação antes da viabilidade do feto e a programação do parto cesariana no terceiro trimestre de gestação devem ser consideradas e discutidas com os pais.

A criança, motivo deste relato de caso, tinha a forma completa da síndrome de Cantrell: ectopia cordis, onfalocele, agenesia do terço distal do esterno, má formação do pericárdio diafragmático e da porção anterior do diafragma e CIV. O tratamento cirúrgico envolveu a correção da posição do coração, defeitos abdominais e torácicos. Considerou-se que a CIV muscular diagnosticada ao nascimento era de pequena magnitude, não justificando sua correção. O fechamento espontâneo da CIV confirmou o acerto da decisão.

Outro defeito intracardíaco não abordado na reoperação foi a CIA, com a mesma justificativa da não abordagem da CIV. Após mais de 4 anos de acompanhamento, a criança permanece assintomática, sem repercussão clínica pela presença da CIA e sua abordagem futura deve ser enfatizada conforme a evolução clínica.

Aspecto que consideramos ter sido decisivo foi o diagnóstico pré-natal, com detalhamento dos defeitos, o que possibilitou programação do parto em estrutura hospitalar preparada, com cuidados intensivos pediátricos e cirurgia precoce, o que ocorreu nas primeiras horas de vida da criança.

Há na literatura controvérsias quanto à melhor técnica cirúrgica e geralmente opta-se pela correção precoce de todos os defeitos existentes, considerando-se a gravidade das anomalias. Naqueles pacientes nos quais estes defeitos não são tão importantes, o planejamento cirúrgico deve priorizar a correção da onfalocele e das alterações diafragmáticas, porque tal correção, quando realizada precocemente, é tecnicamente mais fácil e pode evitar o potencial risco de compressão do coração pelo esterno e a hipoplasia pulmonar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Cantrell JR, Haller JA, Ravitch MM. A syndrome of congenital defects involving the abdominal wall, sternum, diaphragm, pericadium and heart. Surg Gynecol Obstet 1958; 107:602-14.

2. Blatt ML, Zeldes M. Ectopia cordis: report of a case and review of the literature. Am J Dis Child 1942; 63:515.

3. Byron F. Ectopia cordis: report of a case with attempted operative correction. J Thorac Surg 1949;17:717-22.

4. Shah HR, Patwa PC, Shah BP. Case report: antenatal ultrasound diagnosis of a case of "Pentalogy of Cantrell" with common cardiac chambers. Ind J Radiol Imag 2000; 10:99-101.

5. Cullinan JA, Nyberg DA. Fetal abdominal wall defects. In: Rumack CM, Wilson Sr, Charboneau JW, editors. Diagnostic ultrasound. 2nd ed. Vol. 2. New York: C.V. Mosby; 1996. p.1167-9.

6. Harrison MR, Filly RA, Stanger P, De Lorimier AA. Prenatal diagnosis and management of omphalocele and ectopia cordis. J Pediatr Surg 1982;17:64-6.
[ Medline ]

Article receive on domingo, 1 de agosto de 2004

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