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ARTIGO ORIGINAL

Comparação entre o pericárdio bovino decelularizado e o pericárdio bovino convencional utilizado na confecção de biopróteses valvares cardíacas

Jean Newton Lima COSTA; Pablo Maria Alberto Pomerantzeff; Domingo M Braile; Vladimir Aparecido RAMIREZ; Gilberto Goissis; Noedir Antônio Groppo Stolf

DOI: 10.1590/S0102-76382005000100007

INTRODUÇÃO

O tratamento da doença cardíaca valvar tem sido um dos grandes desafios da Cirurgia Cardíaca nas últimas décadas. A substituição da valva nativa por uma prótese tem sido o mais importante avanço no tratamento de pacientes com doença valvar, apesar de não ser destituída de complicações [1].
As próteses mecânicas oferecem função hemodinâmica satisfatória e excelente durabilidade a longo prazo, mas por serem trombogênicas requerem anticoagulação permanente, o que aumenta o risco de sangramento [2-5]. As biopróteses apresentam perfil hemodinâmico ainda melhor, porém tanto os substitutos valvares confeccionados com valvas aórticas porcinas quanto de pericárdio bovino fixados com glutaraldeído induzem ativação do sistema imune [6,7], desencadeando reação inflamatória contra o tecido protético [7,8], o que leva à infiltração da matriz de colágeno, ruptura da malha colágeno-elastina e calcificação [9-11]. Estes eventos culminam, invariavelmente, em disfunção valvar e necessidade de reoperação [2-5].
Diante disto, muito tem sido pesquisado no intuito de se encontrar uma estratégia que crie uma prótese biocompatível e resistente a longo prazo. Evidências anteriores apontam que a decelularização em biomateriais torna o tecido menos antigênico, induzindo menor resposta inflamatória e menor degeneração tecidual [12-14]. Porém, até o presente momento, não foi estudado o processo de decelularização em pericárdio bovino com o intuito de se confeccionar uma bioprótese cardíaca.
No presente trabalho, comparamos as propriedades físicas do pericárdio bovino decelularizado com o modelo convencional, sua capacidade de induzir resposta inflamatória em modelo experimental in vivo, assim como a durabilidade acelerada das próteses confeccionadas com estes materiais.

MÉTODO

Obtenção do material biológico
As amostras foram obtidas em frigoríficos imediatamente após o abate dos animais com idades entre 30 e 60 meses.
O material foi, então, acondicionado em recipientes plásticos contendo solução hipertônica de NaCl com MgSO4 8 mOs, tamponada a pH 7,4 com tampão fosfato 0,13 M e transportado para o laboratório a 4o C, por no máximo 4 horas [15].
No laboratório, os pericárdios foram lavados em solução isotônica de NaCl 0,9% e toda a gordura e aderências foram retiradas.

Processo de decelularização
Os pericárdios bovinos foram montados em suporte para serem submetidos ao tratamento de decelularização. Foram tratados a 20°C, por 24 horas, com uma solução alcalina (3 ml/g de tecido) contendo (v/v) de dimetil sulfóxido 6%, sais (cloreto e sulfato), bases alcalinas (K+, 1,19 M e Na+, 1,74 M), e alcalina terrosa (Ca+2, 0,86M). O material resultante foi equilibrado com solução de Na2SO4, NaCl, KCl e CaSO4 (6 ml de solução/g de tecido) por um período de 6 horas, e o excesso de sais residuais ainda presentes foi removido por lavagens sucessivas com ácido bórico a 3%, água destilada e EDTA 0,3% a pH 11, seguido da estabilização do material em tampão fosfato 0,14 molL-1, pH 7,4. Após este procedimento, as peças de pericárdio foram lavadas 3x15min com água destilada [16].

Reticulação com glutaraldeído
Os materiais obtidos foram tratados com uma solução de glutaraldeído a 0,05% em tampão fosfato 0,14 molL-1, pH 7,4 por um período de 15 minutos, seguido do tratamento com solução de tampão glicina borato. Em seguida, foram lavados seis vezes com tampão fosfato 0,14 mol.L-1, pH 7,4 e encaminhados à Braile Biomédica para processamento. Todo este procedimento foi realizado na Faculdade de Química da USP/ São Carlos, à temperatura de 5°C [16].
Na Braile Biomédica, os pericárdios foram lavados em solução isotônica de NaCl 0,9%. Foram, então, submetidos à fixação com glutaraldeído purificado a 0,5% em tampão fosfato 0,13 M, pH 7,4. A seguir, as amostras foram lavadas por seis vezes, 15 min cada, com tampão fosfato e tratadas com solução tampão borato 0,005 M/ácido glutâmico 0,025 M, ajustando o pH alcalino com NaOH 0,1 N, deixando-as reagir por 24 horas em temperatura ambiente.
Completo o período de curtimento, os pericárdios foram colocados em solução conservadora de formaldeído 4%, em tampão acetato, 0,2M, pH 5,4 por três dias, sendo então submetidos ao controle de qualidade [15].

Controle de qualidade
Anatomia macroscópica
Todas as amostras de pericárdio foram analisadas quanto ao seu aspecto macroscópico por meio de foco luminoso de luz polarizada. Foram descartados sumariamente aqueles com infiltrados anormais, espessamentos ou defeitos de qualquer natureza [15].

Exame histológico
Foi realizada igualmente avaliação microscópica por amostragem aleatória de diferentes fragmentos de pericárdio com o objetivo de estabelecer o padrão histológico presente no material de estudo, mesmo levando-se em conta que tal procedimento não seja rotineiro na confecção e preparo das biopróteses cardíacas. Este estudo serviu igualmente para demonstrar a efetividade da decelularização nas amostras.
O estudo histológico para avaliação da anatomia microscópica utiliza os métodos habituais de inclusão em parafina, com cortes de 3 a 5 Ôm de espessura e coloração com Hematoxilina-Eosina (HE), Tricrômio de Gomori (TG) e Verhoeff (VH).

Resistência mecânica do pericárdio
Esta avaliação consistiu em testes de tração estática (tensão de ruptura, elongação e índice de tenacidade) e teste de encolhimento. Utilizam-se amostras padronizadas de 6 x 20 mm, fixadas por pinças nos aparelhos especiais destinados a este fim [17,18].
Apenas para esta avaliação, os pericárdios foram divididos em três grupos com 10 fragmentos cada. Grupo 1 - pericárdio bovino convencional com parâmetros de aprovação para confecção de bioprótese. Grupo 2 - pericárdio convencional que apresenta parâmetros de descarte para confecção de bioprótese. Grupo 3 - pericárdio bovino decelularizado.

Avaliação hidrodinâmica
Realizamos igualmente teste de fadiga ou durabilidade acelerada em aparelho simulador de fadiga da Shelhigh modelo FTS 300 - USA com quatro câmaras de avaliação (Figura 1) e análise das performances hidrodinâmicas em um sistema duplicador de pulso automático da Shelhigh, modelo V. 4.0 - USA. Três biopróteses de pericárdio decelularizado (mitral n.29) e uma bioprótese de pericárdio bovino convencional (mitral, n. 29 - Braile Biomédica) foram colocadas no simulador de fadiga para avaliação do desgaste mecânico. O teste foi interrompido a cada 50 x 106 de ciclos para avaliação do desempenho hidrodinâmico. Os perfis hidrodinâmicos foram avaliados nos tempos zero, 50, 100 e 150 x 106 de ciclos.


Fig. 1 - Fragmento de pericárdio bovino corado por Hematoxilina-Eosina e visualizado com aumento de 400x. Evidencia-se preservação do ondulação habitual das fibras colágenas e ausência de celularidade.


Fig. 2 - Histograma exibindo a variação da elongação. Não houve diferença estatística entre as quatro próteses


Implante subcutâneo em ratos
Fragmentos de pericárdio bovino dos Grupos I e II foram lavados com solução salina por aproximadamente 10 minutos, previamente ao procedimento cirúrgico, em 50 ratos machos (Wistar, com aproximadamente 180-240g). Após a anestesia, cada animal foi submetido a tricotomia em região abdominal e a incisão mediana com aproximadamente 1 cm interessando apenas a pele, a partir da qual foram confeccionadas uma bolsa subcutânea de cada lado do abdome. Em cada bolsa foi implantado um fragmento de pericárdio de cada grupo. Cinco grupos de 10 ratos foram sacrificados com 7, 14, 30, 60 e 90 dias pós-implante. O material retirado foi enviado para análise histológica, tendo sido estudado utilizando-se as colorações HE, TG E VH e Von Kossa. Os resultados da análise das lâminas foram numerados em escore de zero a quatro cruzes, indicando uma caracterização crescente da presença de atividade inflamatória, formação de granuloma e deposição de cálcio nos tecidos. Todo o material foi avaliado por observador único. A utilização animal esteve de acordo com o "Canadian Council on Animal Care".

Estudo histológico da prótese
Após os testes dinâmicos, o pericárdio das próteses foi novamente submetido a estudo histológico para avaliação da integridade do mesmo após estresse mecânico.
Três próteses de pericárdio bovino decelularizado (PBDC) e uma prótese controle de pericárdio bovino convencional (PBC) tiveram um de seus três folhetos retirado e estudado em suas regiões basal (B), média (M) e livre (L).
Os fragmentos isolados foram incluídos em parafina e submetidos à coloração com HE, TG e VH. Receberam contagem de zero a três cruzes para caracterização da celularidade e do padrão de fibras de colágeno e elastina nos tecidos. Foram igualmente avaliados por observador único.

Análise estatística dos dados
Os dados foram descritos por meio de valores mínimo e máximo, mediana, média e desvio padrão.
Os grupos de pericárdio 1, 2 e 3 foram comparados pela análise de variância e as comparações múltiplas foram realizadas pelo teste de Tukey.
As variáveis do estudo em modelo animal foram avaliadas utilizando-se o teste de sinais de Wilcoxon para amostras pareadas.
As comparações para as variáveis hidrodinâmicas foram realizadas utilizando-se análise de variância e as comparações múltiplas feitas através do teste de Wald.
Nível de significância igual a 0,05 foi adotado em todas as comparações.

RESULTADOS

Avaliação histológica dos pericárdios
Após a obtenção, tratamento e acondicionamento dos fragmentos de pericárdio bovino, procedemos à avaliação histológica dos mesmos para que confirmássemos a efetividade do processo de decelularização. Utilizamos a microscopia ótica para definir a ausência de fragmentos e restos celulares nos sacos pericárdicos tratados, assim como para caracterizar o padrão das fibras de colágeno e elastina. Pudemos observar a efetividade do método de decelularização que retira as matrizes de células fixadas e restos celulares que habitualmente permanecem no pericárdio após a fixação com glutaraldeído (Figura 1).
Evidenciamos, ainda, que a técnica de decelularização não danifica a malha de fibras de colágeno e elastina.

Avaliação da resistência mecânica do pericárdio
Pelos níveis descritivos dos testes comparativos dos grupos, pode-se concluir que não há diferenças significativas entre os grupos quanto às variáveis espessura, elongamento e temperatura conforme exibidos nas Figuras 2 e 3. Para esta última variável, apenas os grupos 1 e 3 foram considerados, pois não houve nenhum valor diferente de 0 para o grupo 2, impossibilitando sua inclusão na análise inferencial. Por outro lado, o grupo 1 apresentou valores médios de tensão de ruptura e índice de tenacidade significativamente maiores do que nos outros dois grupos (p<0,001) - Figuras 4 e 5.


Fig. 3 - Histograma de avaliação da temperatura de encolhimento. Não houve diferença estatística entre os Grupos 1 e 3. Grupo 2 não analisado


Fig. 4 - Histograma da tensão de ruptura. Presença de diferença estatística entre o Grupo 1 com relação aos demais


Fig. 5 - Histograma exibindo a variação entre os Índices de Tenacidade nos três grupos. O Grupo 1 mostrou diferença estatística com relação aos outros dois que não apresentaram diferença entre si


Avaliação histológica em modelo experimental com animais

Pelos níveis descritivos dos testes comparativos dos grupos, pode-se concluir que não há diferenças significativas entre os grupos quanto às variáveis granuloma e infiltrado em nenhum dos dias de avaliação. A análise inferencial da variável calcificação não foi realizada por não ter apresentado nenhum valor diferente de 0 (zero).

Avaliação hidrodinâmica das biopróteses

O desempenho hemodinâmico na avaliação comparativa global entre as quatro biopróteses estudadas mostrou-se semelhante, não havendo diferença entre elas. Encontramos diferença estatística entre algumas medidas analisadas, porém nenhuma se traduziu em diferença de comportamento mecânico entre as próteses e todas as medidas mantiveram-se dentro dos valores preconizados na literatura. É importante ressaltar que a análise estatística para esta avaliação foi exploratória, não sendo possível fazer extrapolação de dados (Figuras 6 a 9).


Fig. 6 - Variação dos valores da fração de ejeção entre as 4 próteses a 80 bpm


Fig. 7 - Variação do fluxo médio transvalvar a 80 bpm


Fig. 8 - Variação da pressão média transvalvar nas 4 próteses


Fig. 9 - Área efetiva do orifício que expressa a área que efetivamente é aberta durante o ciclo valvar


Aspecto histológico final das próteses

A histologia final do pericárdio retirado das biopróteses confirmou a decelularização nas amostras de estudo e evidenciou preservação das características viscoelásticas do pericárdio, com ausência de rupturas ou fragmentações.

COMENTÁRIOS

O implante de próteses valvares cardíacas vem sendo realizado há quase meio século, mas ainda não se chegou a um substituto valvar com critérios satisfatórios de durabilidade e biocompatibilidade. O enxerto ideal deveria apresentar resistência adequada, sendo capaz de tolerar o estresse mecânico a longo prazo; ter perfil hemodinâmico comparável às valvas nativas; ser imunocompatível, não desencadeando respostas de defesa por parte do paciente; ser resistente à degeneração por infiltrações, ruptura da matriz fibroelástica e deposição de cálcio; ter capacidade de manter a vitalidade da malha protéica de colágeno, elastina e glicosaminoglicanos e apresentar baixo custo.
De todos os fatores arrolados como responsáveis pela degeneração protética na atualidade, de longe, os que assumem maior importância e que têm grande parte dos estudos dirigidos para sua pesquisa são a calcificação e a toxicidade do glutaraldeído [19-23]. Dentre os mecanismos da calcificação, tem-se a evidência de que a presença de células mortas e debris de restos celulares incompletamente fixados pelos métodos de tratamento funcionariam como núcleos de calcificação, permitindo a deposição de cristais de fosfatos e carbonatos de cálcio, sódio e magnésio [23]. Em adição a isso, o próprio tratamento com glutaraldeído funcionaria como fator desencadeante da deposição de cálcio. Já foi demonstrado que altos teores de glutaraldeído incorporado ao tecido biológico se relacionam com maior tendência à calcificação em modelo experimental com ratos [24]. A relação causal entre pré-tratamento com glutaraldeído e calcificação foi estudada NIMNI et al. [25], que demonstraram que os polímeros de glutaraldeído e os resíduos carbonílicos livres na matriz de colágeno provêm um sítio inicial para a deposição dos complexos de cálcio.
Assim, diversas estratégias têm sido avaliadas com o objetivo de eliminar ou minimizar a degeneração tecidual induzida por esses fatores, sendo que as técnicas de decelularização se destacam. Utilizam-se detergentes como os descritos por COURTMAN et al. [26] e DOHMEN et al. [27]; extração enzimática por meio de l-tripsina descrita por STEINHOFF et al. [28], a técnica Synergraft apresentada por O'BRIEN et al. [13] ou, ainda, a extração celular utilizada pelo grupo de Goissis [16,29] no Instituto de Química da USP/São Carlos e que foi o método empregado neste estudo.
No nosso estudo, obtivemos decelularização completa, o que foi verificado pela avaliação histológica inicial nos pericárdios tratados, dos quais foi retirado um fragmento para análise. E foi igualmente observado na histologia final do pericárdio das biopróteses que tiveram avaliação de três regiões de cada folheto. Outras avaliações histológicas feitas por nós em pericárdio bovino decelularizado, e não incluídas neste estudo, confirmam a eficácia do método. Nota-se que nem sempre isso é obtido como reportado por SCHENKE-LAYLAND et al. [30] que descrevem decelularização "quase completa" em valvas porcinas tratadas por digestão enzimática com L-tripsina.
A matriz de colágeno e elastina foi preservada. Não encontramos fragmentação ou ruptura importante em nenhum dos espécimes avaliados. Observamos também que, na análise comparativa final do pericárdio das biopróteses dos dois grupos, não houve diferença no padrão histológico. É importante notar que a avaliação histológica tem um componente subjetivo, dependente da avaliação do observador. Tendo isto em vista, para minimizar qualquer possibilidade de diferença de interpretação, todas as amostras foram estudadas por observador único.
Com relação aos testes de tração estática, encontramos resultados interessantes. Comparamos três grupos de pericárdio, como já descrito. Inserimos o grupo 2 (pericárdios sem critérios de aprovação para confecção de bioprótese) com o intuito de avaliar se o pericárdio bovino decelularizado teria comportamento físico comparável ao pericárdio de mau padrão, caso se mostrasse inferior ao pericárdio convencional aprovado.
O critério "espessura" mostrou semelhança entre os três grupos, com n = 0,117. Esta é uma primeira sugestão de que o processo químico de decelularização não afetou a qualidade da rede de colágeno e elastina. Esse resultado contrapõe-se a relatos anteriores que mostraram alteração da espessura dos pericárdios tratados por outras técnicas como já mencionamos.
A elongação definida como a deformação sofrida pelo corpo de prova até a ruptura mostrou-se semelhante entre os três grupos (p=0,416). Esse dado fala igualmente a favor da manutenção da qualidade do pericárdio tratado e que a elasticidade do mesmo não foi afetada pelo tratamento.
A tensão de ruptura e o índice de tenacidade mostraram-se superiores para o pericárdio bovino convencional de bom padrão, sendo que o pericárdio decelularizado foi comparável àquele de mau padrão. Esse dado é conflitante tendo em vista que a espessura e a tensão de ruptura tem uma correlação linear, ou seja, quanto maior a espessura do material, tanto maior a tensão necessária para rompê-lo. No entanto, acreditamos que essa variação seja devida à retirada dos componentes celulares que, mesmo incompletamente fixados, auxiliam na resistência do tecido, sem afetar a espessura da malha. Essa hipótese é corroborada pelo achado do índice de tenacidade. A tenacidade é a energia necessária para romper o tecido. Esta se mostrou superior no grupo I em relação aos outros dois, e os grupos II e III tiveram comportamento semelhante.
Finalmente, e mais importante, a temperatura de encolhimento foi semelhante nos grupos I e III. Esta variável expressa a qualidade da técnica de reticulação do pericárdio e a resistência do mesmo após o processamento. Assim, ainda que a tração e a tenacidade tenham sido superiores para o grupo I, a resistência final dos pericárdios não foi afetada.
É importante notar que estes testes físicos são preliminares no estudo da qualidade do biomaterial e da prótese com ele confeccionada. A informação que eles nos trazem é que o pericárdio apresenta critérios mínimos de resistência, sendo possível prosseguir na avaliação física do material estudado com os testes hidrodinâmicos em laboratório e hemodinâmicos em animais, antes de se aventar a possibilidade da aplicação clínica.
Concluída esta parte do estudo, avaliamos a capacidade de gerar resposta inflamatória e calcificação em modelo experimental com ratos.
Em nosso material, identificamos presença de atividade inflamatória e formação granulomatosa já nos explantes de sete dias. Padrão semelhante foi observado nos grupos de animais sacrificados nos períodos posteriores. Não encontramos qualquer vestígio de calcificação nos espécimes dos dois grupos, em todos os períodos de explante. Apesar do achado de ausência de calcificação no material de controle ter sido inesperado, resultado semelhante também foi encontrado por Marina Maizato, no Instituto do Coração/FMUSP, em estudo comparativo entre o pericárdio bovino liofilizado e o convencional (comunicação verbal).
Com relação aos testes de durabilidade acelerada e perfil hidrodinâmico, encontramos desempenho semelhante entre as quatro próteses. Realizamos o estudo de três BPDC contra um controle de PBC, como preconizado pelas normas nacional (NBR ISO 5840) e internacional (ANSI/AAMI/ISO 5840-1996) para confecção de biopróteses cardíacas. As próteses foram aceleradas a 60, 70, 80, 90 e 100 bpm a cada 50 x 106 de ciclos para avaliação de desempenho e o teste foi interrompido a 150 x 106 ciclos. No entanto, por uma questão de clareza, exibimos apenas os resultados a 80 bpm (freqüência média). Para as variáveis analisadas não houve diferença global entre as biopróteses em nenhum dos ciclos, e as variações exibidas graficamente foram atribuídas ao acaso. É digno de nota que, em nosso projeto piloto, utilizamos duas próteses de pericárdio bovino decelularizado que foram submetidas à durabilidade acelerada com tempo superior a 300 x 106 de ciclos e que mantiveram sua integridade estrutural macro e microscópica à semelhança das BPDC aqui avaliadas. Além da resistência demonstrada, a avaliação de desempenho nos mostra que as BPDC não tiveram alteração de elasticidade ou movimentação de folhetos, assim como mantiveram boa abertura o que nos é exibido pelas curvas fluxo, pressão e abertura do orifício. Assim, apesar de não ser possível fazer qualquer afirmação de modo definitivo sobre a qualidade da BPDC, tomamos o estudo hidrodinâmico como uma avaliação exploratória inicial e cujo resultado nos aponta para um campo de pesquisa promissor. Posteriormente, estes achados precisam ser confirmados por experimentação em modelo animal para avaliação do desempenho in vivo.
Finalmente, a avaliação dos folhetos retirados das biopróteses confirmou a ausência de celularidade nas amostras de PBDC e mostrou padrão habitual da rede de colágeno e elastina, não havendo diferença significativa entre os grupos.

CONCLUSÕES

Com relação à resistência física do pericárdio bovino decelularizado, evidenciamos diferença significativa entre o pericárdio bovino convencional e o decelularizado com relação às variáveis tensão de ruptura e índice de tenacidade, porém ausência de diferença com relação às variáveis espessura, elongação e temperatura de encolhimento.
A capacidade de gerar resposta inflamatória do pericárdio decelularizado in vivo não apresentou diferença com relação ao pericárdio convencional e as biopróteses de pericárdio decelularizado apresentaram comportamento hidrodinâmico semelhante àquele da bioprótese confeccionada com pericárdio bovino convencional.
Tendo em vista os resultados obtidos, ainda que haja algumas discrepâncias isoladas, consideramos o desempenho entre os dois tipos de pericárdio semelhante, tanto na avaliação do tecido isolado quanto como bioprótese. É bem verdade, no entanto, que este estudo faz parte de uma das etapas da avaliação de novos tecidos ou novas técnicas de confecção de uma prótese valvar cardíaca. Não é possível fazer qualquer generalização ou extrapolação sobre a prótese de pericárdio bovino decelularizado apenas a partir dos resultados encontrados. Nossos achados atestam a qualidade do biomaterial avaliado e o comportamento comparável dos dois tecidos, o que nos autoriza a partir para a etapa seguinte. Esta consistirá de estudo experimental in vivo em animais superiores, seja o cão, o porco ou o carneiro, nos quais poderemos analisar o comportamento das próteses em contato com o meio sangüíneo e em condições mais próximas àquelas encontradas no ser humano, ainda que tais modelos não sejam ideais. No entanto, consistem em etapa fundamental da avaliação pré-clínica, sem a qual não é possível partir para a etapa final de estudo in anima nobili.

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