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TRABALHO EXPERIMENTAL

Transplante experimental cardíaco heterotópico e cutâneo em camundongos

Patrícia SESTERHEIM; David SAITOVITCH

DOI: 10.1590/S0102-76382005000200013

INTRODUÇÃO

Atualmente, o transplante de órgãos é a forma terapêutica mais eficaz para pacientes com disfunção orgânica terminal. O índice de sucesso do transplante renal é tal que a sobrevida dos pacientes e de seus enxertos é superior a 90 e 80%, respectivamente, no final do primeiro ano, na maioria dos centros transplantadores de referência do mundo [1]. Estas cifras representam um grande avanço quando comparadas àquelas obtidas desde o início da era moderna dos transplantes de órgãos, nos anos 50 até o início dos anos 80 [2].

Contudo, esta opção terapêutica continua sendo um desafio clínico-cirúrgico, uma vez que muitas questões relevantes ainda permanecem pendentes nesta área. A manutenção do aloenxerto requer o uso permanente de drogas imunossupressoras, que aumentam a incidência de tumores e infecções oportunistas, mas não impedem completamente o processo de rejeição que continua sendo a principal causa de perda tardia do enxerto. Uma alternativa mais atraente seria a forma de imunossupressão específica que tornasse o receptor tolerante aos antígenos do doador, sem necessidade de imunossupressão contínua.

Há mais de um século, experimentos em animais deram início aos transplantes de órgãos [3]. Aplicando técnicas originais, Carrel [4], em 1908, obteve brilhantes resultados no transplante de vasos sangüíneos, órgãos e membros, quando desenvolveu a técnica da anastomose vascular, possibilitando o transplante de órgãos sólidos vascularizados como os rins e coração.

Embora as técnicas de transplante de diferentes órgãos e tecidos estejam muito bem estabelecidas, o grande desafio continua sendo a barreira imunológica, motivando os cientistas a procurarem novos desafios no campo dos xenotransplantes, dos transgênicos, da farmacologia e do desenvolvimento de métodos de indução de tolerância imunológica.

Buscando entender e contornar os processos da rejeição, investigações feitas a partir dos anos 50 demonstraram a importância dos camundongos isogênicos no estudo da imunologia básica, da imunopatologia de transplantes e imunossupressão [4,5], uma vez que estas linhagens permitem controlar e prever eventos imunológicos em alotransplante experimental e estudar o estímulo antigênico durante o processo de rejeição, além das técnicas cirúrgicas do transplante, a fisiologia do mesmo e a indução de tolerância imunológica [5]. Um aspecto importante foi a avaliação do papel de produtos de loci individuais do MHC no aloreconhecimento, assim como no seu potencial tolerogênico.

Este estudo experimental busca desenvolver as técnicas experimentais de transplante cardíaco heterotópico abdominal vascularizado e cutâneo em camundongos, com o objetivo de utilizá-los como instrumento no estudo dos mecanismos imunológicos envolvidos no aloreconhecimento, na avaliação de novas drogas imunossupressoras ou de agentes biológicos e na indução de tolerância.

MÉTODO

Animais

Para o desenvolvimento deste trabalho foram utilizados camundongos isogênicos das linhagens C3H/HeJ (H2K), C57BL/6N (H2b) e BALB/c (H2d), criados e mantidos sob condições de biotério convencional, na Coordenação de Produção e Experimentação Animal (CPEA) do Centro de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CDCT) da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (FEPPS) do Rio Grande do Sul.

Todos os animais eram machos, entre 8 e 10 semanas de idade. Antes e durante a fase experimental, estes animais foram alimentados com ração balanceada padrão para roedores, receberam água ad libitum e foram mantidos em gaiolas individuais, devidamente identificadas com fotoperíodo de 12 horas claro e 12 horas escuro (06:00/18:00h).

Todos os procedimentos adotados, durante as técnicas, envolvendo os animais, estão de acordo com o que preconiza o Colégio Brasileiro de Experimentação Animal, em cumprimento à Constituição do Estado Lei nº 11.915, artigo 82, inciso IV de 21 de maio de 2003 [6]. O projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética e pela Comissão Científica do Grupo de Pesquisa e Pós-Graduação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sob o número GPPG - 98063.

Transplante cardíaco heterotópico

Para o desenvolvimento do modelo experimental de transplante cardíaco heterotópico vascularizado em camundongos, foi empregada a técnica previamente descrita por Corry et al.[7]. Para esse fim, se fez necessário o uso de um microscópio de microcirurgia (Nikon® Stereomicroscope teaching system, modelo SMZ-U), além de instrumental compatível (descritos adiante) para a realização de microcirurgia, previamente autoclavados.

Foram utilizados 92 animais, entre doadores e receptores, perfazendo um total de 22 isoenxertos e 24 aloenxertos.

Todos os animais deste estudo, após pesados em balança analítica (Marte®, AM220), foram anestesiados com uma solução final de cloridrato de xilazina 2% (Rompun®, Bayer Animal Health) e cloridrato de ketamina 10% (Dopalen®, Agribrands Brasil Ltda.) diluídos a 2mg/ml e 10mg/ml em solução salina (0,9%) (Alcon®, Alcon Labs. do Brasil Ltda.), respectivamente. Foi administrada uma dose única de 0,1ml para cada 10g de peso corporal, por via intraperitoneal.

Depois de anestesiados e tricotomizados, doador e receptor foram fixados pelas patas, em decúbito dorsal, com esparadrapo (Cremer®), em placa aquecedora a uma temperatura de 37ºC.

Preparação do receptor

Sob o microscópio com aumento de 16X, com uma tesoura fina reta e uma pinça de dissecção com dentes, foi feita uma abordagem abdominal através de uma laparotomia mediana xifopúbica e, com o auxílio de um afastador de Alm de 70mm (Downs® Downs Surgical Ltd., UK) manteve-se uma abertura abdominal de 4 cm.

Uma gaze umedecida com solução salina 0,9% foi colocada acima da abertura abdominal onde, com auxílio de hastes flexíveis com pontas de algodão (Cotonetes®, Johnson & Johnson), as vísceras foram rebatidas para cima e para direita mediante divulsão e, cuidadosamente, envolvidas com gaze, expondo-se, conseqüentemente, aorta e veia cava inferior (VCI). Procedia-se, delicadamente com o auxílio de pinças para íris nº5, à dissecção das veias lombares que foram ligadas com fio 7-0 (Pearsalls Sutures®, Somerset, UK), realizando hemostasia definitiva em três dos vasos, suficiente para proporcionar um bom campo cirúrgico.

Aorta e VCI foram mantidas em contigüidade, pois além de não interferir na confecção das anastomoses, a dissecção do plano intervascular aumentaria, desnecessariamente, o tempo cirúrgico, além de poder ocorrer a fragilização da parede da VCI e sangramento.

Clampes vasculares de 5 mm (Scoville Lewis®, Downs Surgical Ltd., UK) foram posicionados logo abaixo das veias e artérias renais e logo acima da emergência das ilíacas. Finalmente, aortotomia e venotomia foram realizadas, adjacentes uma a outra, respeitando-se a relação espacial entre a saída da artéria pulmonar (AP) e da aorta, usando-se uma agulha fina 24G e estendidas com uma microtesoura reta de 85mm. Neste momento, com os vasos apenas reparados, cobriu-se a incisão com gaze umedecida e o receptor foi colocado à espera, enquanto o coração do doador era isolado.

Preparação do doador

Com o animal em decúbito dorsal, já anestesiado, a abordagem abdominal foi idêntica à do receptor. Na VCI, foi infundida uma solução de heparina sódica (Liquemine®, Roche Brasil), 10UI/10g de peso corporal, diluída em solução salina. Após a retirada da agulha (24G), a exangüinação ocorreu pelo orifício deixado pela mesma.

Para expor amplamente a cavidade torácica, com uma tesoura fez-se abertura e ressecção da parede anterior mediante secção paraesternal bilateral, seguida de luxação manual das articulações costovertebrais e incisão diafragmática bilateral.

Individualmente, VCI distal, veia cava superior proximal (VCS) e veia ázigos foram ligadas com fio de sutura 7-0 e seccionadas com microtesoura reta. A aorta foi seccionada anteriormente à artéria braquiocefálica, já a artéria pulmonar foi seccionada anteriormente à bifurcação.

Para completar a liberação do coração, atou-se, em bloco, com fio 7-0 (Prolene, Ethicon®), as veias pulmonares, tendo-se o cuidado para que ficassem livres aorta e AP, deixando um fio de reparo para auxiliar neste manejo. O coração foi gentilmente destacado do tórax do doador e colocado em um Becker (50ml) com solução salina a 0,9% a 4ºC. Para manter a temperatura, enquanto o receptor estava sendo remanejado, o Becker foi mantido em gelo seco.

Implantação do enxerto cardíaco

O coração do doador foi retirado da solução salina e acomodado no abdome do receptor, de maneira que a ligadura em blocos fosse mantida, durante a operação, cranialmente ao receptor. Durante a implantação do enxerto cardíaco, o mesmo foi permanentemente gotejado com solução salina (4ºC) para sua proteção.

Iniciou-se pela anastomose término-lateral da aorta do doador com a do receptor (Figura 1). Um ponto foi feito na extremidade proximal da aortotomia e outro na extremidade distal, a partir do qual foi iniciada a sutura simples contínua de um lado da elipse formada, terminando na extremidade proximal. Repetiu-se o mesmo procedimento no outro lado da elipse. A mesma técnica foi empregada à anastomose da AP com a VCI . Ambas anastomoses vasculares foram feitas usando-se fio de sutura 10-0 com agulha 0,07mm (Ethilon®, Surgicon Ltd., UK).

Concluídas as anastomoses, as mesmas foram circundadas com esponja hemostática (Gelfoam®, Pharmacia & Upjohn Co., EUA) e as pinças foram retiradas, primeiramente a proximal e depois o distal. A perfusão foi realizada com sangue proveniente da aorta abdominal do receptor que entrava de forma retrógrada pela aorta do receptor. Devido à competência anti-refluxo da valva aórtica, o sangue que entrava nas artérias coronárias do enxerto perfundia o miocárdio, e retornava ao átrio e ventrículo direitos por meio das veias coronárias e, então, para artéria pulmonar, ainda no coração do doador, passando para veia cava abdominal do receptor. Trata-se, portanto, de um modelo de transplante não funcional, visto que as cavidades cardíacas não recebem sangue.

Terminada as anastomoses, as vísceras foram recolocadas na cavidade abdominal, com auxílio de hastes de algodão, em volta do enxerto. Suturou-se com fio 7-0 (Prolene, Ethicon®) os planos muscular e cutâneo, retirou-se os esparadrapos que estavam presos às patas e manteve-se o animal sobre a placa aquecedora por mais 2 horas. Finalmente, o receptor foi colocado em gaiola individual, mantendo-se o manejo rotineiro adotado pelo biotério da CPEA.

A função do enxerto cardíaco foi monitorada, diariamente, até 100 dias do transplante, por meio de palpação direta do abdome, por dois ou mais investigadores.

Transplante cutâneo

Para o desenvolvimento do modelo experimental de transplante cutâneo, foi empregado o procedimento descrito por Billingham E Medawar [8,9]. Para este fim, foram utilizados 21 doadores e 64 receptores entre as diferentes linhagens, realizando-se 30 isoenxertos e 34 aloenxertos.

Preparação do receptor

Após anestesia, foi realizada a tricotomia dorso-lateral (4 cm2) com máquina para tosa (Oster®, USA), seguida de anti-sepsia com álcool etílico 70% e o animal foi colocado em decúbito dorsal.

Preparação do doador

No doador, foi realizada a eutanásia realizando-se o deslocamento cervical preconizado pela Lei 714, de 20 de junho de 2002, que dispõe sobre procedimentos e métodos de eutanásia em animais e outras providências, do Conselho Federal de Medicina Veterinária, e pelo Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA) [10,11].

A pele da base da cauda do animal foi seccionada transversalmente, com lâmina de bisturi nº24 (Solidor®) e, após, longitudinalmente. Com o auxílio de uma pinça de dissecção, esta foi tracionada distalmente (base-ponta), retirada do animal e submersa em solução salina 0,9% a 4ºC.

Implantação do enxerto cutâneo

Na região tricotomizada do receptor, com uma pinça nº3 e uma tesoura fina reta para íris, foi retirado 1 cm2 de tecido cutâneo. Com a lâmina de bisturi, foi seccionado 1 cm2 da pele total da cauda do doador. Com uma pinça, o fragmento de pele caudal foi distribuído no seu leito receptor e mantido com sutura simples transfixante nas quatro extremidades do quadrado cutâneo enxertado (Figura 2). Os receptores ficaram em gaiolas individuais, mantendo o manejo rotineiro adotado pelo biotério da CPEA.

Diariamente, os animais foram observados, até 100 dias do transplante, e a rejeição foi confirmada diante da observação da combinação de algumas características: cianose, eritema, erosão e, finalmente, perda total do enxerto cutâneo.

Análise estatística

Para análise da curva de sobrevida, utilizou-se o método de Kaplan-Meier.

RESULTADOS

Transplante cardíaco heterotópico abdominal vascularizado

Analisando uma amostra de animais (n=20) escolhidos aleatoriamente, observamos que o tempo operatório total para a realização dos transplantes foi, em média, 60,3±6,3 minutos, sendo dispensado para preparação do receptor 22,9±3,1 minutos, para liberação do coração do doador, 11,1±1,5 minutos e para confecção das anastomoses, 26,3±3,6 minutos.

Do total de 22 isotransplantes cardíacos realizados, por meio de palpação direta, observou-se que, 4 horas após o transplante, um (4%) dos animais não apresentava o batimento do enxerto, morrendo 5 horas após a constatação. Em outro, houve paraplegia, observada após o término do efeito anestésico. Embora o batimento do enxerto fosse percebido, em virtude desta paralisia e o sofrimento apresentado, a eutanásia, nestes casos, foi indicada e realizada 48 horas após o transplante. Os demais camundongos (20 animais) e seus respectivos enxertos (91%) sobreviveram por mais de 100 dias após a operação.

Entretanto, dos 24 alotransplantes cardíacos realizados, constatou-se ausência de batimento do enxerto cardíaco em oito animais no 10º dia após o transplante; em doze animais, no 11º dia e em quatro animais, no 12º dia (Figura 3).

Transplante cutâneo

Para a preparação do receptor do enxerto cutâneo, a média de tempo dispensado, observada em uma amostra aleatória (n=20), foi de 7,0±0,9 minutos; entre a eutanásia e a retirada da pele da cauda do doador o tempo utilizado foi de 5,00±0,8 minutos e a implantação do enxerto cutâneo, 5,75±0,71 minutos, perfazendo uma média de tempo total de operação de 17,75±0,71 minutos.

Nos 30 isotransplantes cutâneos realizados não houve rejeição. Entretanto, dos 34 alotransplantes, nove (27%) enxertos foram rejeitados no 6ºdia, doze(35%), no 7º dia e treze (38%) enxertos cutâneos rejeitados no 8ºdia (Figura 4).


Fig. 1 - Transplante cardíaco: implantação do enxerto cardíaco - anastomose término-lateral da aorta do doador com a do receptor e anastomose término-lateral da artéria pulmonar do doador com a veia cava inferior do receptor (16 X)


Fig. 2 - Transplante cutâneo: isoenxerto cutâneo em um camundongo da linhagem C57BL/6N, seis dias após o transplante


Fig. 3 - Gráfico de sobrevida dos enxertos cardíacos: 22 isotransplantes e 24 alotransplantes


Fig. 4 - Gráfico de sobrevida dos enxertos cutâneos: 30 isotransplantes e 34 alotransplantes


COMENTÁRIOS

O camundongo é o animal experimental de escolha em várias áreas, por ser de fácil criação e manipulação, ter uma reprodução rápida, comportamento dócil, resistência a infecções e traumas cirúrgicos, larga diversidade genética, grande similaridade biológica e disposição anatômica das estruturas internas, quando comparadas à espécie humana. Além disso, estima-se que a homologia do DNA codificador, entre estas duas espécies, esteja compreendida entre 70 e 90% [5].

As linhagens isogênicas, pelo cruzamento entre irmãos durante, pelo menos, 20 gerações, originando populações de camundongos geneticamente idênticos, constituem uma das maiores vantagens no uso deste modelo para o estudo dos mecanismos imunológicos [5].

Assim sendo, os animais de laboratório, em especial os camundongos, são utilizados de forma exponencial no desenvolvimento de modelos experimentais de transplante, principalmente cardíaco, renal e de ilhotas pancreáticas.

Os pesquisadores Robert Corry Henry Winn e Paul Russell [7], em 1973, reconhecendo a importância do uso de linhagens isogênicas para a compreensão de eventos imunológicos, desenvolveram um modelo experimental cardíaco murino semelhante ao protocolado experimentalmente para aloenxertos cardíacos em ratos, por Ono e Lindsey, em 1969 [12]. Assim como o transplante cutâneo, atualmente, este é o modelo experimental mais utilizado nas pesquisas biomédicas [13-15].

A técnica experimental de transplante cardíaco heterotópico vascularizado em camundongos, descrita por Corry et al. [7] e desenvolvida neste estudo, embora possa ser realizada por apenas um único cirurgião, requer um treinamento microcirúrgico prévio, no mínimo quatro meses, para aquisição de destreza manual, uma vez que, se tratando de animal de pequeno porte (±35g), se faz necessário, além de microscópio, o uso de instrumental específico para microcirurgia. Falhas técnicas são responsáveis pelos óbitos dos animais nas primeiras 72 horas após o transplante [5]. Contudo, assim como relatado por Corry et al. [7], o sucesso da técnica aproxima-se de 90%.

Outro fator limitante no transplante em camundongos é a anestesia. Pequenos animais como ratos, camundongos ou hamsters possuem um metabolismo relativamente elevado, necessitando assim de uma dose mais alta de anestésico, quando comparados a espécies maiores. Ainda, há diferença no uso de anestésico, também, entre linhagens diferentes da mesma espécie. Sendo assim, há dois fatores que dificultam a anestesia em camundongos: o baixo peso corporal, aumentando o risco de overdose, ocasionando hipotermia e, muitas vezes, a morte; e as diferentes linhagens que metabolizam de forma dessemelhante os agentes anestésicos. Deste modo, a padronização e administração das doses entre linhagens distintas de camundongos isogênicos, para uma média de tempo cirúrgico de uma hora (61,14±7,31 min), deve ser bastante flexível [16].

Os vasos (1-3 mm de diâmetro) e demais estruturas dos camundongos possuem tamanho muito reduzido e são extremamente delicados [17]. Mesmo hastes de algodão, se atritadas contra as paredes da VCI e aorta abdominal, podem fragilizá-las e causar sangramento. É necessário que o cuidado redobre durante a dissecção das veias lombares para hemostasia definitiva. Este procedimento é realizado com pinça reta para íris e, sendo estes vasos extremamente sensíveis, qualquer toque efetuado com a pinça pode ser suficiente para causar ruptura e hemorragia. O mesmo cuidado deve ser tomado durante as ligaduras das veias e artérias para liberação do coração do doador. Pequeno contato das pinças com os átrios ou ventrículos pode causar perfurações imperceptíveis até o momento que o enxerto, uma vez anastomosado, é perfundido, levando ao insucesso da técnica e, conseqüentemente, à morte do animal.

A incidência de paraplegia (n=1) associou-se com um tempo de isquemia medular próximo a 60 minutos. Esta complicação é, geralmente, contornada com o aumento da destreza com a técnica e a diminuição do tempo operatório.

Este modelo de transplante experimental possui a vantagem de permitir a avaliação instantânea da função do enxerto pela visualização imediata do batimento cardíaco, evidenciando assim o sucesso da técnica [5]. Entretanto, ocasionalmente, há a necessidade de massagear o enxerto cardíaco até que volte ao seu ritmo normal [7]. O mesmo é perfundido com sangue oxigenado, proveniente da aorta abdominal do receptor, que entra na artéria coronária do enxerto e retorna ao átrio e ventrículo direitos e, então, para artéria pulmonar, drenando para veia cava inferior do receptor.

Embora esta perfusão seja mantida durante a sobrevida do enxerto, ocorre ausência de enchimento ventricular esquerdo, o que leva à hipotrofia do músculo cardíaco isolado [13].

A monitoração da contração cardíaca do enxerto, por meio de palpação direta do abdome, realizada diariamente, algumas vezes pode ser confundida com a transmissão da pulsação da aorta do doador [18]. Batimentos muito fortes da artéria podem significar obstrução, da mesma forma que o ingurgitamento da veia [19].

Assim como o modelo experimental cardíaco murino, o transplante cutâneo é utilizado amplamente em pesquisas que objetivam o aprofundamento da compreensão da imunologia dos transplantes, principalmente os mecanismos envolvidos na rejeição e sua prevenção e tratamento [5,9].

A técnica de transplante cutâneo, desenvolvida neste estudo, foi estabelecida e padronizada por Billingham e Medawar[8], em 1951, passo importante para o estudo das bases imunológicas da rejeição ao aloenxerto [19].

Os enxertos cutâneos são uma excelente forma de identificar a histocompatibidade entre doador e receptor, técnica largamente utilizada em biotérios para avaliar a isogenicidade em colônias de animais inbred [17].

Esta técnica possui a vantagem de ser simples e rápida, podendo ser realizada em série, uma vez que o tempo entre a retirada do enxerto e seu transplante não ultrapassa 20 minutos. Outra vantagem é a realização de até cinco transplantes com a pele da cauda de um único doador. Além disso, o curto período de anestesia exige uma dose menor de anestésicos, não havendo riscos maiores para o animal [9,16].

A sobrevida, ou a rejeição do enxerto, é facilmente monitorada (avaliação visual), baseada no aspecto da pele, exibindo características bem definidas de rejeição aguda e crônica [19]. A rejeição aguda ocorre normalmente na primeira semana após o transplante e o enxerto apresenta os vasos dilatados e cianose, seguida de erosão cutânea. Já a rejeição crônica pode levar semanas ou, até mesmo, meses, dependendo da histocompatibilidade entre doador e receptor [8,19].

Contudo, a técnica possui limitações. Está bem estabelecido que enxertos avascularizados estão sujeitos à degeneração isquêmica que pode levar à inflamação e necrose, mesmo quando singeneicos [20]. Entretanto, está sendo demonstrado que aloenxertos cardíacos não-vascularizados são rejeitados mais lentamente (e, às vezes, até mesmo não são rejeitados) do que enxertos cutâneos entre a mesma combinação de linhagens [15]. Sendo assim, a diferença no modo de vascularização não parece ser a única diferença na sobrevida dos enxertos cutâneo (7º dia) e cardíaco (11º dia).

As diferenças entre as técnicas não se limitam às complexidades metodológicas ou vascularização, mas principalmente aos mecanismos efetores, suscetibilidade à rejeição ou resistência à indução de tolerância imunológica [21-23].

A existência de uma hierarquia na suscetibilidade à rejeição de deferentes aloenxertos (pele, ilhotas pancreáticas e coração) está bem definida, contudo, os mecanismos responsáveis são desconhecidos. Embora o enxerto cardíaco estimule a ativação de um número muito maior de células T alorreativas do que o enxerto cutâneo, a pele apresenta maior suscetibilidade à rejeição e maior resistência à indução de tolerância [15]. Por outro lado, Sun et al. [24] demonstraram que quanto maior a massa aloenxertada, maior pode ser a sua sobrevida. Um único coração ou rim transplantado, entre diferentes linhagens de ratos, sofre rejeição aguda em curto espaço de tempo; entretanto, o transplante simultâneo de dois corações ou dois rins em um único receptor resulta em uma maior sobrevida destes aloenxertos.

Estudos sugerem que o microambiente e a carga antigênica do enxerto podem ter um importante papel na determinação da suscetibilidade à rejeição de um aloenxerto e resistência a indução de tolerância imunológica [25]. Além disso, outra explicação para a maior suscetibilidade da pele à rejeição (e menor à indução de tolerância) é a presença de antígenos tecido-específicos, para os quais a tolerância central (tímica) não foi desenvolvida pelo receptor [25].

É exatamente esta maior dificuldade na indução de tolerância imunológica do enxerto cutâneo, aliada à facilidade de sua realização, que o torna um modelo experimental interessante e com maior relevância clínica, quando comparado a modelos vascularizados.

Infelizmente, ainda não existem meios seguros e reproduzíveis de se induzir tolerância imunológica, no contexto dos transplantes, em seres humanos. Embora apresentem limitações, os modelos experimentais murinos, desenvolvidos neste estudo, constituem ferramentas importantes para o avanço do conhecimento dos mecanismos imunológicos envolvidos no aloreconhecimento e produção de tolerância.

AGRADECIMENTOS

Ao financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), à colaboração da Fundação Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e à Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde.

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