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ARTIGO ORIGINAL

Impacto da troponina I cardíaca sérica na evolução tardia de pacientes submetidos a ressincronização com estimulação biventricular: seguimento de até 59 meses

João Carlos F. LEAL; Maria Cristiane Valéria Braga BRAILE; Achilles ABELAIRA FILHO; Luis Ernesto Avanci; Moacir F. GODOY; Domingo M Braile

DOI: 10.1590/S0102-76382005000300009

INTRODUÇÃO

A insuficiência cardíaca (IC) é caracterizada por alterações estruturais, biológicas e funcionais do sistema cardiocirculatório, não sendo somente devida ao comprometimento da contração das fibras miocárdicas, devendo-se também levar em consideração o perfil dinâmico e progressivo da síndrome [1]. Na transição da IC assintomática para sintomática, ocorre o remodelamento do miocárdio, do colágeno e das estruturas vasculares. A ativação do sistema nervoso simpático, renina-angiotensina e outros sistemas neurohumorais é fator de grande relevância no remodelamento miocárdico. A progressão da IC resulta em piora na qualidade de vida e aumento no risco de morte, sendo que, após um ano de aparecimento dos sintomas, a mortalidade atinge índices porcentuais entre 40 a 60% nos pacientes com classe funcional III/IV da NYHA [2-4].

As terapias medicamentosas levam a bons resultados na melhora da classe funcional. O uso dos betabloqueadores, especificamente o carvedilol, que atuam contra o remodelamento miocárdico via ação anti-noradrenalina, causa redução de cerca de 30% na mortalidade. A espirolactona reduz a fibrose miocárdica, inibindo a aldosterona e os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (ECA) e os bloqueadores dos receptores de angiotensina1 (AT1) antagonizam o remodelamento miocárdio e a apoptose [5,6]. Na evolução da IC ocorrem alterações elétricas que contribuem para a instabilidade hemodinâmica, sendo o bloqueio do ramo esquerdo (BRE) a principal alteração na condução elétrica infranodal, ocasionando contrações interventriculares assincrônicas. Este dissincronismo miocárdico é que leva aos distúrbios na função sistólica, no fechamento da valva aórtica e, principalmente, no retardo da abertura valvar mitral, diminuindo o tempo de enchimento ventricular esquerdo [7]. Bleeker et al. [8] avaliaram a relação entre a duração do QRS e a dissincronia miocárdica esquerda em pacientes portadores da ICC, concluindo que pacientes com QRS <120 ms e = 120 ms apresentaram 27% e 70%, respectivamente, de dissincronismo.

A utilização da estimulação multisítio para suporte hemodinâmico, introduzida em 1994, vem demonstrando benefícios clínicos com reduções significativas do número de dias hospitalizados por IC, melhora no teste da caminhada até 6 minutos, na qualidade de vida e na classe funcional [9]. Com base nestes resultados, a ressincronização biventricular tornou-se uma opção no tratamento da IC, conseguindo com a estimulação de sítios diferentes e estratégicos uma despolarização mais rápida e, conseqüentemente, a recuperação do sincronismo interventricular.

Na IC, as mudanças da morfologia intracelular determinam áreas descontínuas de mionecrose e sítios de fibrose. A disfunção ventricular esquerda e o aumento da mortalidade no avanço da IC foram associados a níveis séricos elevados da troponina cardíaca. Essa elevação decorre da degradação miofibrilar, o que determina o potencial de especificidade e sensibilidade da troponina I cardíaca como biomarcador sérico na insuficiência cardíaca congestiva (ICC) grave [10]. A troponina I cardíaca é um biomarcador de lesão miocárdica, uma vez que sua localização é no complexo da contratilidade miocárdica dentro do sarcômero [11].

O objetivo deste estudo foi analisar a qualidade de vida pelo Minnesota Code, o comportamento de parâmetros ecocardiográficos, a taxa de sobrevivência (curva Kaplan-Meier) e a influência prognóstica dos níveis séricos da troponina I cardíaca, nos pacientes com insuficiência cardíaca congestiva submetidos a ressincronização interventricular, com seguimento de até 59 meses.

MÉTODO

O estudo analisou 33 pacientes portadores de miocardiopatia dilatada idiopática em classe funcional III/IV da NYHA, sendo 20 (60,6%) do sexo masculino. As idades variaram de 41 a 84 anos (média 65± 30,4 anos; mediana 64 anos). Todos apresentavam estado clínico avançado da insuficiência cardíaca com dispnéia e fadiga aos pequenos e moderados esforços. Utilizavam terapia medicamentosa otimizada para ICC com digital, diuréticos, inibidores ECA e AT1, betabloqueadores e os antiarrítmicos para controle da freqüência cardíaca e focus ectópicos em alguns pacientes. Exames complementares de diagnóstico realizados foram ecocardiograma, Holter, estudo hemodinâmico do coração e a ventriculografia isotópica.

A ressincronização ventricular foi feita com o implante dos eletrodos atrial e ventricular direito por via endovenosa (veia cefálica esquerda), e com o implante do eletrodo do ventrículo esquerdo no epimiocárdio, via minitoracotomia anterior esquerda. O dissincronismo ventricular esquerdo com QRS maior que 120 ms esteve presente em 70% dos pacientes, destes, a maioria com BRE. Todos apresentavam ritmo sinusal.

A qualidade de vida foi analisada com uso do questionário Minnesota Code, que determina as condições de saúde e o ecocardiograma para avaliar a função ventricular esquerda no pré e pós-procedimento. Os parâmetros ecocardiográficos utilizados foram a fração de ejeção ventricular esquerda (FEVE) pelo método de Simpson e o diâmetro diastólico (DDVE) do ventrículo esquerdo. A dosagem do nível sérico da troponina I cardíaca foi realizada após o procedimento pelo método da quimiluminescência e o valor considerado como normal foi < 0,1 ng/ml. Os métodos estatísticos utilizados foram o teste Mann-Whitney para comparação dos pontos entre o pré e pós, tanto para o Minnesota Code, quanto para os parâmetros ecocardiográficos. O teste exato de Fischer foi utilizado para avaliar o evento óbito-relacionado, elevação dos níveis séricos da troponina I cardíaca e a curva de Kaplan-Meier foi empregada para avaliação da taxa de sobrevivência. O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto Domingo Braile.

RESULTADOS

O seguimento após o implante do ressincronizador biventricular variou de 1 a 59 meses (média 24 ± 14,5 meses; mediana=24 meses). A qualidade de vida pelo Minnesota Code foi significantemente melhor após o implante, sendo a mediana de 73 pontos, no pré e 36, na última avaliação (p<0,0001; Figura 1).

O diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo reduziu de 65mm para 60mm no pós-implante (p=0,0014) e a fração de ejeção aumentou de 37% para 47% (p=0,0004; Figura 2). Houve nítida correlação entre ocorrência de óbitos e troponina I cardíaca acima dos valores normais. Dos 33 pacientes estudados, 23 realizaram a dosagem sérica de troponina I após o procedimento. Destes, um grupo de oito pacientes apresentou troponina I acima do valor normal, sendo que seis faleceram. Nos 15 pacientes com troponina normal não ocorreram óbitos durante o tempo de seguimento (p=0,0003). A curva atuarial de livres de óbitos em pacientes submetidos a implante de ressincronizador biventricular demonstrou uma taxa de sobrevivência ao final de 59 meses de 47,1±13,3% (Figura 3).

COMENTÁRIOS

Na insuficiência cardíaca, os sistemas de ativação da função ventricular estão alterados, as cardiomiofibrilas sofrem mudanças nas microorganelas e a duração do QRS tende a aumentar [10]. No arsenal da terapia para pacientes portadores da insuficiência cardíaca congestiva com tratamento clínico já "otimizado", o implante de ressincronizador com estimulação biventricular tornou-se uma alternativa segura e efetiva. A ressincronização dos ventrículos propõe uma contração simultânea dos mesmos e redução do retardo atrioventricular, como auxiliar no tratamento medicamentoso da disfunção ventricular esquerda.

A causa etiológica parece não interferir nos resultados. No presente estudo, foram excluídos pacientes chagásicos e isquêmicos, muito embora pacientes portadores de doença coronariana obstrutiva não respondam bem ao tratamento de ressincronização [12]. Estudos randomizados com o ressincronizador biventricular demonstraram melhora nos parâmetros fração de ejeção e diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo e também melhora na distância percorrida nos 6 minutos, na classe funcional e da qualidade de vida. No entanto, a taxa da mortalidade não diminuiu [9,13,14].

O estudo PATH-CHF com número limitado de pacientes demonstrou melhora na capacidade física, entretanto, não houve o mesmo desempenho em exercício de alta capacidade física, quando comparado o estímulo univentricular e biventricular com seguimento de até 12 meses [15]. O MIRACLE e o MUSTIC também demonstraram uma melhora na qualidade de vida, na FEVE e número de hospitalizações [13]. No entanto, 20 a 30% dos pacientes submetidos ao implante do ressincronizador responderam de maneira muito discreta à melhora funcional. O QRS alargado não se comporta como um bom preditor da presença de dissincronia. Alternativas vêm surgindo para identificar e estratificar melhor as dissincronias do ventrículo esquerdo e o miocárdio responsivo para uso do ressincronizador, respectivamente [14].

Nessa avaliação, foi possível demonstrar melhora na FEVE, no DDVE e na QV, mas a falta de boa resposta hemodinâmica em alguns pacientes justifica também a procura de uma forma de identificar os pacientes melhor responsivos ao ressincronizador. Missov et al. [10] evidenciaram a importância da troponina I cardíaca na evolução da disfunção ventricular em pacientes portadores de ICC, em decorrência da degeneração celular e múltiplos focos de mionecrose. As troponinas I e T, por serem enzimas cardíacas de alta especificidade e sensibilidade na lesão miocárdica, são fatores que contribuem na avaliação prognóstica de pacientes submetidos a implante de ressincronizador cardíaco [11].



Fig. 1 - Comportamento da avaliação da qualidade de vida pelo Minnesota Code, em pacientes com insuficiência cardíaca avançada submetidos a implante de ressincronizador ventricular


Fig. 2 - Comportamento do diâmetro diastólico ventricular esquerdo (DDVE) e da fração de ejeção ventricular esquerda (FE), em pacientes com insuficiência cardíaca avançada submetidos a implante de ressincronizador ventricular


Fig. 3 - Quantificação da ocorrência de óbitos em pacientes com insuficiência cardíaca avançada submetidos a implante de ressincronizador ventricular, de acordo com os valores séricos de troponina I cardíaca na avaliação inicial


CONCLUSÕES

A ressincronização cardíaca em pacientes com IC dilatada melhora os parâmetros ecocardiográficos (FEVE e DDVE) e a qualidade de vida de acordo com o Minnesota Code. É uma alternativa efetiva e segura para os pacientes em classe funcional III/IV NYHA em tratamento medicamentoso otimizado, a taxa de sobrevivência ao final dos 59 meses foi de 47,1 ± 13,3%. Foi possível demonstrar que níveis séricos elevados da troponina I cardíaca podem ser considerados como preditores de risco para óbito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Article receive on terça-feira, 1 de março de 2005

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