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EXPERIÊNCIA DO SERVIÇO

Cirurgia cardíaca em uma sociedade multiétnica: a experiência do Caribbean Heart Care

Jose BURGOS-IRAZABAL; Risshi D. RAMPERSAD; Walter J Gomes; Kamal A. RAMPERSAD; Gianni D. ANGELINI

DOI: 10.1590/S0102-76382005000300016

INTRODUÇÃO

Os países de língua inglesa do Caribe constituem uma sociedade multiétnica com diferentes culturas, religiões e estilos de vida. Esta sociedade multiétnica inclui caucasianos, afro-caribenhos, indianos, asiáticos, hispânicos, europeus e índios, com uma grande variabilidade de padrões socioeconômicos. O Escritório Central de Estatísticas de Trinidad-Tobago reportou, no último censo (2000), uma população de 1.262.400 habitantes, com taxa média de crescimento anual de 0,7%, sendo 40% descendentes de indianos, 37% afro-caribenhos, 20% mestiços, 0,6% caucasianos e 0,3% chineses [1]. A incidência e os tipos de doenças cardíacas também variam significativamente entre essas etnias.

Historicamente, a população dessa região que necessitava tratamento com cirurgia cardíaca tinha que se deslocar para o Reino Unido ou a Flórida. Em 1993, um programa de cirurgia cardíaca de adultos foi iniciado em Port of Spain, capital de Trinidad-Tobago e ex-colônia britânica, com o objetivo de prover atendimento nessa área a todos os pacientes do Caribe. O volume de cirurgia foi baixo desde o início, principalmente porque o serviço foi destinado a atendimento de pacientes privados. Tivemos, portanto, o desafio de sustentar o programa e, ao mesmo tempo, alcançar padrões internacionais de qualidade [2].

O consenso geral da literatura é que certo volume mínimo de cirurgia cardíaca é necessário ser realizado, por cirurgião ou por instituição, para se obter resultados de qualidade satisfatória [3-7]. Num estudo de 120 programas de cirurgia cardíaca na Califórnia, demonstrou-se que a mortalidade não-ajustada para cirurgia de revascularização miocárdica (CRM) foi 3,91% (923 de 23.619), em hospitais realizando menos que 200 procedimentos por ano e 2,09% (496 de 23.704), em hospitais com mais de 500 procedimentos/ano. O risco ajustado na CRM mostrou grande variabilidade entre hospitais com volume cirúrgico menor que 200 e maior que 500 procedimentos por ano. Entretanto, neste estudo houve hospitais de baixo volume com resultados excelentes [2]. Relatamos aqui a análise retrospectiva dos dados dos pacientes adultos e pediátricos operados no programa de cirurgia cardíaca de baixo volume numa sociedade multiétnica, no Caribbean Heart Care, localizado em Port of Spain, capital de Trinidad-Tobago, no Caribe (Figura 1).

MÉTODO

Foram analisados os dados retrospectivamente coletados de 1157 pacientes que se submeteram à cirurgia cardíaca em dois hospitais sob o mesmo programa, em Trinidad-Tobago, entre novembro de 1993 e dezembro de 2004. O programa de cirurgia cardíaca pediátrica foi iniciado em setembro de 1998.

RESULTADOS

Do total de 1157 casos, 878 eram adultos (629 homens, idade média de 67 anos, variando entre 18 e 88 anos) e 279 eram pediátricos (idades entre 2 semanas e 21 anos). A Figura 2 mostra o volume anual de cirurgias realizadas na população adulta e pediátrica.

Adultos

Dos pacientes adultos, 65% eram de origem indiana, 12% afro-caribenhos e 23% mestiços. Destes pacientes, 39,4% eram diabéticos e 46,5% hipertensos. Os procedimentos cirúrgicos em adultos incluíram CRM, troca valvar ou valvoplastia, correção de aneurisma da aorta e cirurgias de emergência em dissecção de aorta.

O número de procedimentos permaneceu ao redor de 70 a 80 por ano até 2003, quando o governo de Trinidad e Tobago iniciou o programa de financiamento de 120 casos por ano. A maioria dos procedimentos foram cirurgias de revascularização do miocárdio (82,2%), tendo sido empregada uma média de 2,6 ± 0,8 enxertos por paciente. Cirurgia de valva aórtica foi realizada em 49 (6,8%) pacientes e de valva mitral em 96 (10,9%). Dos procedimentos de valva mitral, 50% foram cirurgias reparativas (plastia).

Outros procedimentos (4,1%) incluíram ressecção de mixoma, cirurgia de aneurisma de aorta ascendente e correção de dissecção de aorta tipo A.

Na fase inicial do programa, poucos casos de revascularização miocárdica foram realizados sem circulação extracorpórea (CEC), mas, a partir de 1997, o número dessas operações aumentou progressivamente e, em 2001, as operações sem CEC excederam o número daquelas com CEC (Figura 3). Em 2004, 71,2% de todas as operações coronárias foram realizadas sem CEC. A mortalidade global em cirurgias de adultos foi 3,8% e em cirurgia de revascularização miocárdica 2,8% (sendo 0% em 2004).

Pediátrico

O programa de cirurgia cardíaca pediátrica começou em setembro de 1998 e 279 operações foram realizadas até dezembro de 2004. Os procedimentos predominantes foram correção de comunicação interventricular, comunicação interatrial e tetralogia de Fallot, mas também um expressivo número de outros procedimentos (Tabela 1). A mortalidade global no grupo pediátrico foi 1,1%.

COMENTÁRIOS

Este estudo é uma análise retrospectiva de dados coletados prospectivamente, que refletem a experiência do único centro regional na especialidade, situado no Caribe de língua inglesa. Embora sendo um centro de baixo volume de cirurgias cardíacas, os dados mostram resultados excelentes com baixa mortalidade, alinhados com os de centros internacionais de qualidade. Relatos na literatura têm freqüentemente criticado as instituições e cirurgiões com baixo volume de cirurgias, como sendo incapazes de produzir bons resultados. Embora existam estudos mostrando que a mortalidade possa ser maior em certas condições em hospitais de baixo volume [5], outros estudos demonstram o contrário, com pacientes de maior risco sendo direcionados para hospitais de baixo volume [6].

Nós podemos apenas especular as razões para esses resultados. O serviço é inteiramente dirigido por médicos locais, treinados no Reino Unido, com exceção dos cirurgiões, que trabalham em sistema de rodízio e são provenientes do Reino Unido, Itália e América do Sul. Os cirurgiões visitantes, embora individualmente não realizando um grande número de operações em Trinidad, são todos cirurgiões liderando unidades em seus países de origem e realizando 200 ou mais procedimentos por ano.

Poucos trabalhos têm estudado a associação entre raças e os resultados após a cirurgia de revascularização miocárdica, bem como balancear os achados de prevalência de doenças cardiovasculares em alguns grupos étnicos devido aos fatores de risco acrescidos por práticas culturais e valores [8,9]. Entretanto, como o número de operações em nossa instituição está crescendo, isto pode dar-nos a oportunidade de no futuro responder a essa questão em nosso ambiente multicultural e multirracial.



Fig. 1 - Mapa detalhando a localização geográfica de Trinidad e Tobago


Fig. 2 - Evolução anual do número de operações realizadas no Caribbean Heart Care


Fig. 3 - Evolução do número de cirurgias de revascularização do miocárdio realizadas com e sem circulação extracorpórea (CEC)




CONCLUSÃO

A experiência do nosso centro, de baixo volume de cirurgias cardíacas em uma sociedade multiétnica, demonstra que é possível obter resultados comparáveis aos padrões internacionais de qualidade. Nós acreditamos que isto é possível predominantemente devido à qualificação dos profissionais envolvidos no programa, o que resulta em alto padrão de cuidados aos pacientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. 2000 Census, Central Statistical Office of Trinidad and Tobago, Port of Spain.

2. Thomas CN, Brann SH, Douglas AR, Thomas JM, Daniel SC, Posthoff C et al. Coronary artery bypass graft outcome: the Trinidad and Tobago experience. West Indian Med J. 2000;49(4): 290-3.

3. Carey JS, Robertson JM, Misbach GA, Fisher AL. Relationship of hospital volume to outcome in cardiac surgery programs in California. Am Surg. 2003;69(1):63-8.

4. Noronha JC, Martins M, Travassos C, Campos MR, Maia P, Panezzuti R. Use of hospital mortality rates following coronary artery bypass graft surgery to monitor hospital care. Cad Saúde Pública. 2004;20(Suppl 2):S322-30.

5. Dudley RA, Johansen KL, Brand R, Rennie DJ, Milstein A. Selective referral to high-volume hospitals: estimating potentially avoidable deaths. JAMA. 2000;283(9):1159-66.

6. Nallamothu BK, Saint S, Hofer TP, Vijan S, Eagle KA, Bernstein SJ. Impact of patient risk on the hospital volume-outcome relationship in coronary artery bypass grafting. Arch Intern Med. 2005;165(3):333-7.

7. Hannan EL, Siu AL, Kumar D, Kilburn H Jr, Chassin Mr. The decline in coronary artery bypass graft surgery mortality in New York State: the role of surgeon volume. JAMA. 1995;273(3):209-13.

8. Verderber A, Castelfranco AM, Nishioka D, Johnson KG. Cardiovascular risk factors and cardiac surgery outcomes in a multiethnic sample of men and women. Am J Crit Care. 1999;8(3):140-8.

9. Konety SH, Vaughan-Sarrazin MS, Rosenthal GE. Patient and hospital differences underlying racial variation in outcomes after coronary artery bypass graft surgery. Circulation. 005;111(10):1210-6.

Article receive on sexta-feira, 1 de abril de 2005

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