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RELATO DE CASO

Espasmo coronário no pós-operatório de cirurgia de revascularização do miocárdio: relato de caso e revisão concisa da literatura

Marcelo Luiz Peixoto SOBRAL; Luis Alberto Saraiva Santos; Gilmar Geraldo dos Santos; Noedir Antonio Groppo Stolf

DOI: 10.1590/S0102-76382005000400014

INTRODUÇÃO

O espasmo de artéria coronária (EAC) é raro, mas pode ocorrer como uma grave complicação na revascularização do miocárdio (RM) e aparece como importante causa de infarto agudo do miocárdico (IAM), no período intra e pós-operatório imediato (POI) [1-3]. O pequeno número de casos relatados na literatura dificulta o tratamento e reconhecimento dos fatores que possam levar a essa complicação [2].

Nesta publicação, apresentamos o caso de um paciente submetido à cirurgia de RM com circulação extracorpórea (CEC) que apresentou supradesnivelamento de ST sugestivo de IAM, no POI, quando foi realizado novo cateterismo cardíaco (CAT) que demonstrou EAC. Realizamos também revisão concisa da literatura.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 47 anos, apresentava dor precordial típica havia cerca de três meses. Procurou o pronto-socorro com forte dor precordial, sudorese fria, vômitos e hipotensão. Após exame físico e ECG, foi diagnosticado IAM com supradesnivelamento de ST de V1 a V4, D1 e AVL. Evoluiu com instabilidade hemodinâmica, seguida de parada cardiorespiratória, sendo reanimado com sucesso e, após o retorno da circulação espontânea, optou-se pelo uso de trombolíticos, com critérios de reperfusão coronária. Evoluiu clinicamente bem e recebeu alta hospitalar no 7° dia de internação.

Após a fase aguda, o ECG mostrava alterações inespecíficas de repolarização ventricular, além de bloqueio de ramo esquerdo (Figura 1A). O estudo hemodinâmico realizado durante a internação mostrou lesões em artéria coronária direita (CD) de 70%, placas ulceradas em artérias descendente anterior (DA) e circunflexa (CX) de aproximadamente 95% e 50%, respectivamente, e o ventrículo esquerdo apresentava acinesia apical e hipocinesia inferior; indicado tratamento cirúrgico eletivo.

A operação foi realizada por meio de de esternotomia mediana, com auxílio de CEC, cujo tempo foi de 85 minutos e o tempo de anóxia de 40 minutos. Foram realizadas hipotermia sistêmica a 28°C e proteção miocárdica com solução cardioplégica sangüínea anterógrada hipotérmica, em intervalos de 20 minutos com reperfusão quente. Foram realizadas anastomoses distais da artéria torácica interna esquerda para DA, pontes de veia safena para CD e para artéria marginal esquerda. No ato cirúrgico, observou-se que as artérias coronárias tinham regular calibre e a presença de placas ateroscleróticas difusas.

Após a admissão na Unidade de Terapia Intensiva, o paciente apresentou alterações no ECG com supradesnivelamento do segmento ST em V1 e AVL, além de infradesnivelamento em DIII (Figura 1B), acompanhadas de instabilidade hemodinâmica. Optou-se pelo tratamento com drogas vasoativas (noradrenalina) e aumento da dose de vasodilatador coronariano, porém sem melhora do quadro hemodinâmico e eletrocardiográfico. O paciente foi, então, submetido à cinecoronariografia que demonstrou espasmo na DA (Figura 2A), sendo que todos os enxertos estavam pérvios. Neste momento, optou-se pela administração de vasodilatadores intracoronarianos com boa resposta clínica, sendo observada restituição do calibre arterial primitivo (Figura 2B).

Ocorreu a estabilização hemodinâmica e normalização do ECG (Figura 1C). O paciente recebeu alta da UTI no 2°PO e do hospital no 8°PO. Evolui bem e permanece assintomático após oito meses de pós-operatório.


Fig. 1A - Pré-operatório


Fig. 1B - Pós-operatório imediato antes do re-estudo


Fig. 1C - 1º Pós-operatório




Fig. 2A (em cima)- DA com espasmo. Contraste injetado pela artéria torácica interna esquerda.
2B- DA após injeção pela artéria torácica interna esquerda de vasodilatadores coronarianos


DISCUSSÃO

O aparecimento súbito de instabilidade hemodinâmica no POI de RM pode ser causado por EAC [1,2] e tem como características início repentino de hipotensão, associado ou não a arritmias, às vezes, bradicardia, alargamento do complexo QRS ou supradesnivelamento do segmento ST e, na maioria dos casos, boa resposta aos vasodilatadores coronarianos intravenosos ou intracoronarianos [1,2].

O mecanismo do EAC foi reconhecido há muito tempo. Em 1959, Prinsmetal descreveu pela primeira vez um tipo de angina reversível causada por alteração do tônus vagal coronário [3], em 1972, Bentivoglio relatou IAM causado por EAC em 22 pacientes, porém sem confirmação angiográfica [3]. Em 1977, Oliva et al. confirmaram o EAC angiograficamente [3]. Vários autores realizaram relatos semelhantes, porém nenhum deles conseguiu estabelecer a relação causal entre o EAC e o evento isquêmico [3]. O IAM acontece antes ou depois do espasmo? Enfim, tal questão é de difícil resposta e existem poucos estudos que demonstrem tal relação. Vicente et al. demonstraram angiograficamente um caso de EAC precedendo o evento trombótico do IAM [4].

Vários são os fatores que podem predispor ao EAC, no período intra e pós-operatório de cirurgias cardíacas: a presença de ateromatose coronária, mas há relatos na literatura de EAC em artérias coronárias aparentemente normais [4]. O uso excessivo de substâncias vasoconstritoras é relacionado também a maior incidência de espasmo. Outros fatores relacionados à CEC ou à tática cirúrgica usadas aumentam a incidência de eventos, como: o resfriamento do paciente e o excesso de cálcio e potássio usados em soluções cardioplégicas. Outros fatores teciduais como a lesão endotelial e a ação de serotonina e histamina endógena também podem influenciar na gênese do EAC [1].

A incidência de EAC é maior entre a raça amarela, quando comparado aos caucasianos [2]. Koshiba et al. [2] estudaram o perfil clínico-cirúrgico de 115 relatos de casos de EAC relacionados à cirurgia cardíaca. A média de idade dos pacientes foi de 64 anos, com 94% dos casos acima de 50 anos. O sexo masculino foi prevalente (84%). Com relação aos fatores de risco, vários foram observados, com maior ênfase para hipertensão arterial sistêmica, presença de angina prévia e tabagismo. A maioria dos eventos ocorridos foi documentada no período intra-operatório (76%), contra 11% no POI. Outros fatores que podem contribuir são: plano anestésico inadequado (23%), vasopressores (22%), estimulação mecânica, entre outros.

O diagnóstico angiográfico precoce deve ser realizado no curso de EAC refratário à terapia medicamentosa, no intuito de se obter o exato diagnóstico e para tratamento medicamentoso [3]. O EAC normalmente é encontrado em um vaso, mas pode ocorrer em várias artérias simultaneamente [4,6].

O tratamento do EAC deve ser individualizado e adaptado às condições clínicas, podendo ir desde a terapia convencional com nitratos e antagonistas do canal de cálcio até o uso de suporte mecânico ou restituição da CEC ,quando diagnosticado no ato operatório [1-6].

No caso apresentado, podem estar envolvidos como fatores de risco, a presença de lesões coronárias graves e difusas, a hipotermia no intra-operatório, o uso de potássio na solução cardioplégica e o manuseio da DA, para realização da anastomose, haja vista o acometimento arterial extenso. O critério de submeter ao estudo angiográfico os pacientes que evoluem com IAM, no POI, pode definir o diagnóstico e o tratamento adequado. Após o CAT, a infusão de vasodilatadores foi mantida, conforme preconizado na literatura [1,3,6]. Empregamos rotineiramente o uso de bloqueadores de canal de cálcio para pacientes que vão ser submetidos a cirurgias de RM com uso de enxerto de artéria radial, conduta que poderia ser estendida a casos de alto risco para EAC.

Em conclusão, o EAC tem caráter multifatorial, aparecimento súbito e em grande parte melhora com a administração de nitratos intravenosos e bloqueadores do canal de cálcio. Deve entrar no diagnóstico diferencial como causa de IAM e síndrome de baixo débito em pacientes submetidos às cirurgias cardíacas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Kinoshita, Matsuzaki K, Mayumi H, Asou T, Masuda M, Kawachi Y et al. A new aspect of coronary artery spasm induced by cardiac surgery. Jpn J Surg. 1991;21(4):395-401.

2. Koshiba K, Hoka S. Clinical characteristics of perioperative coronary spasm: reviews of 115 case reports in Japan. J Anesth. 2001;15(2):93-9.

3. Freedman RJ, Fuentes F, Smalling RW, Kirkeeide RL, Sterling RP,Walker WE et al. Left coronary artery spasm causing severe left ventricular dysfunction without myocardial infarction. Texas Heart Inst J. 1986;13(2):223-31.

4. Takashiba K, Matsuda Y, Hamada Y, Ohno H, Hyakuna E, Fujii M et al. Recurrence of myocardial infarction related to different vessels in a patient with diffuse coronary artery spasm without underlying severe organic stenosis. Clin Cardiol. 1988;11(4):265-7.

5. Sakuma M, Kamishirado H, Inoue T, Ichihara K, Takayanagi K, Hayashi T et al. Acute myocardial infarction associated with myocardial bridge and coronary artery vasospasm. Int J Clin Pract. 2002;56(9):721-2.

6. Cipriano PR, Koch FH, Rosenthal SJ, Schroeder JS. Clinical course of patients following the demonstration of coronary artery spasm by angiography. Am Heart J. 1981;101(2):127-34.

Article receive on segunda-feira, 1 de agosto de 2005

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