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ARTIGO ORIGINAL

Endarterectomia de carótida em paciente acordado

Paulo César SANTOSI; Hélio Antônio FabriII; Cláudio Ribeiro da CUNHAIII; Carlos Alberto da Cunha MARTINSIV; Jullyanna Sabrysna Morais SHINOSAKIV; Adriano Silva NEVESVI; Olair Alves de QUEIROZVII; Alexandre Menezes RODRIGUESVIII

DOI: 10.1590/S0102-76382006000100012

INTRODUÇÃO

Desde a realização bem sucedida, em 1953, por DeBakey [1], a endarterectomia tornou-se o tratamento de eleição para pacientes portadores de estenose de artéria carótida, podendo ser realizada com segurança e baixas taxas de morbi-mortalidade em pacientes de alto risco [2,3].

Os pacientes com doença aterosclerótica carotídea são, majoritariamente, idosos e portadores de várias comorbidades associadas, fato que limita o tratamento cirúrgico, uma vez que eles são submetidos à anestesia geral (AG), à monitoração invasiva e a todas as suas conseqüências. Desse modo, a endarterectomia de artéria carótida (EAC) sob bloqueio cervical regional figura como uma intervenção "minimamente invasiva", uma vez que a menor perda sangüínea e o tempo relativamente curto de operação interferem pouco nos mecanismos homeostáticos do paciente [4,5].

Baseados nisso, avaliamos, independentemente da idade e do risco cirúrgico, o tempo de operação, a necessidade do uso de shunt intra-operatório, a taxa de conversão para AG, as complicações cirúrgicas, o tempo de permanência na unidade de tratamento intensivo (UTI) e no hospital, e evolução durante um ano de seguimento dos pacientes submetidos à EAC, sob bloqueio cervical regional, no nosso serviço.

MÉTODO

O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética das duas instituições envolvidas.


Foram realizadas 67 EAC com bloqueio cervical regional em 61 pacientes, no período de junho de 1998 a janeiro de 2004. Todos os pacientes apresentavam 70% ou mais de estenose de carótida interna, diagnosticada por Doppler e confirmada por angiografia.

Pacientes

A idade variou de 47 a 97 anos, com média de 69,7 anos; sendo 10 (16,40%) octogenários e 2 (3,28%) nonagenários. Os demais dados referentes ao perfil demográfico e à sintomatologia pré-operatória estão demonstrados na Tabela 1. Quanto às comorbidades, 45 pacientes eram hipertensos; 17, diabéticos; 21, coronariopatas, e 12 eram portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica (Figura 1).

Técnica anestésica

A técnica anestésica empregada foi a de Labat [6]. A cabeça do paciente em decúbito dorsal foi girada lateralmente e foram empregados como pontos de referência a ponta do processo mastóide, o processo transverso da 5ª vértebra cervical e o tubérculo anterior da 6ª vértebra cervical, para que pudessem ser localizadas as extremidades dos processos transversos das vértebras C2 a C4. Lateralmente a esses processos, foram feitos botões intradérmicos de 5mL de solução de marcaína a 0,5%, seguidos de infiltração subcutânea de 15mL adicionais ao longo da borda posterior do músculo esternocleidomastóideo.

Técnica operatória

Foi realizada incisão cervical longitudinal paralela à borda anterior do músculo esternocleidomastóideo; as artérias carótidas comum, interna e externa, foram individualizadas e, após heparinização, foram ocluídas e observado o estado neurológico do paciente. Em seguida, realizou-se a remoção da placa por arteriotomia, a qual foi fechada com pericárdio bovino.

A monitorização neurológica foi feita por meio de observação da função motora dos membros contralaterais e do nível de consciência, por meio da realização de perguntas básicas iniciadas antes da operação e repetidas durante o curso operatório, sendo que o shunt foi colocado quando houve déficit motor e/ou queda do nível de consciência.

Após a operação, os pacientes foram encaminhados à UTI. Em seguida à alta hospitalar, os pacientes foram avaliados pelo próprio cirurgião, 30 dias e 1 ano após o procedimento operatório, e realizado duplex scan de carótidas.

RESULTADOS

O tempo médio de operação foi de 120 minutos, e o tempo médio de oclusão da carótida interna foi de 30 minutos.

A operação foi realizada à esquerda em 39(58,20%) casos e, à direita, em 27 (40,30%). Os pacientes acometidos por doença carotídea bilateral foram submetidos à endarterectomia bilateral em dois tempos, sendo primeiramente operado o lado sintomático. Treze (19,40%) pacientes necessitaram de cirurgia de revascularização do miocárdio, a qual foi realizada após o tratamento carotídeo.

Foi necessária a conversão para AG em dois casos, devido à agitação e não colaboração dos pacientes e, em seis casos, foi necessária a colocação de shunt intra-luminal, pois os pacientes apresentaram queda do nível de consciência e déficits neurológicos. Não houve morte, acidente vascular cerebral (AVC) ou infarto agudo do miocárdio (IAM) peri-operatórios.

No pós-operatório, foram observados episódios de confusão mental em dois pacientes e um caso de infecção da ferida operatória, que foi tratada com antibioticoterapia oral e evoluiu com boa resolução.

No seguimento, foi detectada reestenose de carótida por trombose em três casos, sendo que dois foram tratados com nova endarterectomia, e um, em que ocorreu trombose bilateral, teve um lado submetido a uma nova operação e o outro tratado com angioplastia e colocação de stent. Não houve morte, AVC ou IAM durante 1 ano de acompanhamento. As complicações ocorridas estão resumidas na Tabela 2.

Os tempos médios de permanência na UTI e de internação foram, respectivamente, 1,34 dia (variação de 1 a 5 dias) e 4,20 dias (variação de 2 a 15 dias).







DISCUSSÃO

Nosso critério de inclusão dos pacientes baseou-se em três estudos multicêntricos que demonstraram a eficácia e a durabilidade da reconstrução cirúrgica da oclusão aterosclerótica carotídea igual ou maior que 70% na profilaxia de AVC [7-9]. No NASCET [7], para estenoses entre 70% e 99%, a taxa de AVC foi 9% no grupo em que foi realizada endarterectomia e 26% no grupo que recebeu tratamento clínico, com diminuição do risco absoluto para AVC de 17±3,5%. No ECST [8], para os mesmos valores de estenose, o grupo tratado com endarterectomia apresentou taxa de AVC (2,8%) cerca de 6 vezes menor, quando comparado ao grupo tratado clinicamente (16,8%). No ACAS [9], para pacientes assintomáticos com grau de estenose maior que 60%, 5,1% dos tratados com endarterectomia apresentaram AVC, enquanto que este índice foi de 11% no grupo tratado clinicamente.

Os parâmetros avaliados neste estudo foram selecionados com o intuito de verificar algumas das possíveis vantagens da EAC sob anestesia regional (AR) em relação à AG, já arroladas por diversos autores: monitorização neurológica mais eficiente, com redução da necessidade de shunt intra-operatório; menor risco conseqüente à AG na população de alto risco; maior estabilidade da pressão arterial, com menor uso de terapia anti-hipertensiva endovenosa; menor tempo de operação; menor tempo de permanência na UTI; alta hospitalar mais precoce; menores índices de AVC peri-operatório e complicação cardiovascular[4,5,10-14].

O bloqueio cervical permitiu o acesso contínuo ao estado neurológico do paciente no transcorrer da operação. Em concordância com Harbaugh e Pikus [5], que relatam ser a operação melhor tolerada pelos pacientes plenamente conscientes do que pelos sedados, procuramos manter o mínimo de sedação possível, para que não fosse prejudicada a avaliação do nível de consciência. É provável que a instabilidade neurológica seja o preditor de maior acurácia para a possibilidade de ocorrência de AVC após EAC do que qualquer outra técnica já utilizada, como eletroencefalografia (EEG), medida do fluxo sangüíneo cerebral regional, Doppler transcraniano, espectroscopia infravermelha e medida de pressão retrógrada da carótida interna [4].

Uma decorrência direta da monitorização neurológica mais eficaz na EAC com o paciente acordado foi a possibilidade do uso seletivo de shunt, uma vez que são vários os riscos envolvidos na sua utilização [10,15]. Devido à dissecção endotelial do vaso, o shunt traz o risco de trauma grave da íntima nos pontos de inserção e maior probabilidade de trombose na área operada; também pode aumentar a dificuldade técnica do procedimento (visualização da placa), acarretando a ampliação da arteriotomia; pode, ainda, aumentar o risco de embolização gasosa e aterotrombótica, pela maior manipulação da artéria [12,16,17].

Apesar do uso de shunts eletivo com monitoração por EEG ser a prática provavelmente mais disseminada atualmente, ficando a monitoração baseada no estado neurológico do paciente sob AR em segundo plano, foi observado que os falsos-positivos e falsos-negativos não são incomuns na técnica de shunt baseada em EEG [18]. Além disso, a operação com o paciente acordado resultou em uso de shunt em 8,95% dos casos, valor este que se encontra em consonância com outros trabalhos. Para freqüência de uso de shunt em operações com AR vs AG, foram encontrados, respectivamente, os seguintes valores: 15% vs 67% [19]; 7,4% vs 17% [18]; 9% vs 39% [3]; 12% vs 52% [14]. Magnadottir et al. [4] usaram shunt em 6,1% casos operados sob AR, e os valores mais baixos foram registrados por Raso et al. [17], que empregaram shunt em 2,7% das operações com AR.

Neste estudo, não foi feita a análise formal da variabilidade hemodinâmica intra-operatória, mas foi registrado que apenas dois casos necessitaram do uso de aminas vasoativas. Em estudos que avaliaram as vantagens fisiológicas da EAC com AR para o fluxo sangüíneo cerebral, foram verificadas menores taxas de hipotensão intra-operatória em relação à operação com AG, 8% vs 40% [11], maior instabilidade hemodinâmica e necessidade de maior administração de medicação vasoativa no intra e no pós-operatório para o grupo em AG [13,14]. Também foi observado que 83% dos operados com AG e 75% dos submetidos à AR que tiveram complicações pós-operatórias haviam apresentado hipertensão peri-operatória grave [14].

Em um estudo comparativo das alterações eletroencefalográficas de pacientes submetidos à EAC sob AG ou sob AR, foi observado que a melhor preservação da circulação cerebral ipsilateral e a maior tolerância aos efeitos do pinçamento carotídeo na AR seriam resultado da própria técnica anestésica, o que elevaria a técnica de AR à condição de fator de proteção cerebral. Este efeito poderia ser devido à melhor estabilidade hemodinâmica, eliminação do uso de outras drogas anestésicas e preservação da auto-regulação intrínseca, que talvez esteja associada ao aumento da pressão sangüínea sistêmica intra-operatória e à ausência de bloqueio dos receptores de perfusão cerebral, fato que, especula-se, possa ocorrer na AG [18,19].

Breen e Park [20] reconheceram que as técnicas anestésicas, gerais ou regionais, têm influência na morbi-mortalidade dos pacientes, especialmente nos de alto risco, devendo a escolha da técnica estar vinculada às conseqüências ocasionadas. No caso das ECAs, os autores concluíram que os estudos não randomizados por eles analisados favorecem o bloqueio regional, em virtude da redução nas incidências de AVC, IAM e morte, porém alertaram quanto à necessidade de mais estudos randomizados para melhor avaliar as duas técnicas anestésicas.

No nosso estudo, não houve morte, AVC ou IAM peri ou pós-operatórios. Em uma série de 200 pacientes, Love e Hollyoak [3] também não registraram morte ou AVC até 30 dias de pós-operatório. Bowyer et al. [14] notaram incidência significativamente maior de AVC no grupo sob AG em relação à AR (5,3% vs 1,1%). Já Sternbach et al. [13] encontraram morbidades neurológicas semelhantes nos dois grupos, porém com menores taxas de IAM, falência cardíaca congestiva e arritmia ventricular para os submetidos à AR.

Pacientes submetidos à EAC são, freqüentemente, idosos e portadores de numerosas comorbidades. Portanto, deve haver a preocupação de que a operação seja minimamente invasiva, o que pode ser conseguido com a abordagem da AR. Magnadottir et al. [4] acreditam que os riscos não-neurológicos inerentes à AG e à monitoração invasiva podem ser maiores do que o risco do próprio procedimento cirúrgico para muitos pacientes. Esses autores analisaram 600 EAC em regime de AR e compararam as complicações entre portadores de fatores de risco pré-operatórios, como idade maior que 75 anos, diabete melito, insuficiência coronariana e oclusão de carótida interna contralateral, com pacientes sem esses fatores de risco, não encontrando maior morbi-mortalidade peri-operatórias para os primeiros. Pelo contrário, sugeriram que a AR seja uma técnica mais segura no concernente às complicações cardiopulmonares, principalmente para os pacientes de mais alto risco, podendo chegar a uma taxa de complicações não-neurológicas 13 vezes menor do que em pacientes submetidos à AG.

A EAC sob AR também se mostrou viável e eficaz em nosso estudo, sendo que apenas 2,98% dos pacientes requereram conversão para AG. Para Bowyer et al. [14], esse número foi de 4,8%, e para Love e Hollyoak [3] não houve necessidade de conversão.

O tempo de oclusão da carótida foi semelhante ao de outros trabalhos [4,17] e o tempo total de operação foi menor em relação às EAC realizadas sob AG no nosso serviço anteriormente, semelhante ao observado por outros autores [11,13,14]. O tempo médio de permanência na UTI foi 1,34 dia, sendo que a tendência é de não enviar os pacientes rotineiramente para a UTI, mas monitorá-los cuidadosamente na sala de recuperação e transferi-los para a UTI apenas quando hemodinamicamente instáveis [3,11]. O tempo médio de internação também foi curto, cerca de 4 dias, de acordo com os registros de outras publicações [13,14,17]. Esses resultados, somados à redução no uso de medicação anti-hipertensiva intravenosa e na utilização de shunt, proporcionam também uma redução de custos [11,14].

McCarthy et al. [21] desenvolveram e validaram um questionário que evidenciasse a opinião dos pacientes quanto a ansiedade, satisfação e tolerância, sendo comparadas as respostas dos que se submeteram à EAC sob AR e AG. Os resultados mostraram que os pacientes tiveram, no geral, uma experiência positiva em relação à EAC, independentemente da técnica anestésica empregada. Contudo, o quesito percepção de recuperação, que abrangeu a sensação do paciente quanto a náusea, angústia, dor, tempo de permanência e retorno às atividades habituais, pendeu significativamente em favor da AR.

CONCLUSÃO

A partir dos resultados satisfatórios obtidos nesta série quanto a complicações, uso de shunt, tempo de operação e de internação, concluímos que a EAC realizada com AR é uma técnica segura, eficaz, minimamente invasiva e viável para pacientes com estenoses carotídeas moderadas a graves, incluindo idosos e portadores de várias comorbidades.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos às equipes dos Hospitais Santa Catarina, Santa Genoveva e Hospital das Clínicas de Uberlândia, e à Liga de Cardiologia e Cirurgia Cardiovascular da Universidade Federal de Uberlândia, coordenada pelo Prof. Dr. Elmiro Santos Resende.

Article receive on sábado, 1 de outubro de 2005

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