Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

1

Views

EDITORIAL

Um novo programa de residência médica em cirurgia cardiovascular com acesso direto

Gilberto Venossi BarbosaI

DOI: 10.1590/S0102-76382006000400005

O programa de residência médica consolidou-se, ao longo dos anos, como a melhor alternativa para formação de especialistas competentes. Com sua estratégia de treinamento em serviço, para aquisição de habilidades e uma pequena carga instrucional teórica, mostrou-se eficaz em formar bons profissionais.

No começo, era de acesso direto, com formação em três anos, depois cursou com nova modalidade de acesso, com um ano de cirurgia geral e três de cardiovascular, e mais recentemente, após modificações introduzidas pela CNRM-MEC (resolução CNRM 03/2002 e resolução 02/2006), expandiu-se pela inclusão de um pré-requisito obrigatório de dois anos de cirurgia geral, seguidos de mais quatro anos em cirurgia cardiovascular. Essas mudanças foram ocorrendo sem uma avaliação eficaz do produto final e sem razões de domínio científico que validasse tais mudanças. É claro que a intenção deve ter sido a de contemplar maior consistência de conhecimento e habilidades técnicas para quem cursasse esta nova modalidade. Não foram as sociedades médicas da especialidade que solicitaram tais mudanças, mas são seus membros que exercitam as preceptorias de tais programas nos centros credenciados, responsabilizando-se pela sua execução e avaliação.

A ciência médica e, em especial, algumas especialidades, mais do que outras, estão sofrendo um forte impacto provocado pelo desenvolvimento de novas tecnologias de diagnóstico e de terapêutica, obrigando os profissionais a incorporarem o conhecimento e as habilidades necessárias para seu uso competente na prática diária. Não se trata de modismos, pois várias delas estão afirmadas por pesquisa clínica e aprovadas pela melhor evidência como eficazes.

Há, portanto, a necessidade de mudanças radicais na formação do médico residente em cirurgia cardiovascular, e isto implica em alterações profundas no programa formador. Não se trata de mudar conteúdos somente, mas colocar o foco em aquisição de novas habilidades capazes de torná-lo apto a servir com mais competência à população brasileira.

Ocorre, nos dias de hoje, uma concorrência entre especialidades afins no domínio e uso destas novas tecnologias, tornando o mercado de trabalho confuso e competitivo, alijando os menos preparados. A Associação Médica Brasileira, em boa hora, está disciplinando estas práticas médicas por meio dos níveis de competência e com ênfase no núcleo de formação dos profissionais de cada área. Para exemplificar: no tratamento das doenças da aorta e de seus ramos ocorrem já há algum tempo intervenções endovasculares, sem limites precisos de atuação pela: RADIOLOGIA, NEURORADIOLOGIA, NEUROCIRURGIA, CIRURGIA VASCULAR PERIFÉRICA, HEMODINÂMICA E CIRURGIA CARDIOVASCULAR.

Assim como no tratamento das arritmias por meio de implantes de dispositivos como marca-passos multisítios, cardioversores-desfibriladores realizados por eletrofisiologistas, cardiologistas e cirurgiões cardiovasculares.

Nos últimos congressos internacionais, surgiram as demonstrações de correções de lesões da valva aórtica por via percutânea e transapical ventricular, sem necessidade de circulação extracorpórea (Enable, Entrata) e tratamento da insuficiência mitral (Bace, Evalve-clip, Viacor PTMA, e Mitral Life) por técnicas endovasculares, realizadas por especialistas de diferentes áreas como hemodinamicistas, radiologistas, cirurgiões vasculares e cardiovasculares. Estas novas tecnologias em desenvolvimento, certamente, vão ocupar um espaço importante na terapêutica futura das doenças das valvas cardíacas, que hoje representam perto de 30% das cirurgias da especialidade. A terapia gênica e celular é outra vertente disputada por diferentes especialidades e em fase crescente de utilização em áreas sensíveis de terapêutica convencional, como na cardiopatia isquêmica e nas miocardiopatias dilatadas.

Estes fatos estão exigindo esforço e tempo para a aquisição e incorporação desta nova ciência no preparo profissional do cirurgião cardiovascular em formação.

Há uma imensa necessidade de gastar mais tempo na aquisição de conhecimentos nos métodos de imagem tradicionais e de última geração, pois eles não só ajudam no diagnóstico como são instrumentos necessários na terapêutica menos invasiva.

Há necessidade do domínio dos equipamentos radiológicos e de intensificação de imagem para inserção de dispositivos endovasculares como, por exemplo, filtros na veia cava para reter trombos e poder realizar logo após a operação de tromboendarterectomia pulmonar para tratar a hipertensão pulmonar secundária.

O ecocardiograma transesofágico per-operatório constitui-se num valioso auxílio de decisão durante a operação para definir a função ventricular pós-revascularização, ou a qualidade de uma reconstrução valvar. O cirurgião tem que saber interpretar estas imagens para planejar e executar o ato operatório com mais eficiência e menor risco e mais segurança para o paciente.

Urge ampliar o tempo nos estágios em áreas estratégicas como: radiologia (tomografia helicoidal, ressonância eletromagnética etc.), estudo da função ventricular e viabilidade miocárdica na medicina nuclear, diagnóstico das lesões e planejamento operatório com auxílio da ecocardiografia em todas as suas modalidades. Não basta receber um laudo do ecocardiografista, temos que saber interpretar as lesões básicas como, por exemplo, o grande prolapso de uma cúspide mitral e possível etiologia, para planejar previamente a tática reconstrutiva.

As cirurgias minimamente invasivas com o auxílio de toracoscopia (com ou sem acoplamento de robótica) exigem treinamentos específicos, com gasto considerável de tempo para aquisição de habilidades específicas, como nas cirurgias das artérias coronárias e correção da fibrilação atrial persistente.

Os exemplos cursam em todas as áreas da nova cirurgia cardiovascular, não havendo mais a possibilidade de perda de tempo em adquirir conhecimentos ou habilidades em áreas que por si próprias não contribuem mais para formação do novo cirurgião que o mercado de trabalho exige.

A própria cirurgia geral, antes bem definida em relação a sua estrutura formativa, sofreu nos últimos anos um desdobramento, fruto das novas conquistas tecnológicas. Hoje, ela está dividida em cirurgia geral básica, cirurgia geral avançada, cirurgia do aparelho digestivo, cirurgia oncológica, cirurgia da cabeça e pescoço, cirurgia do trauma, além de redistribuir conteúdos que antes pertenciam ao seu domínio para a coloproctologia e outras áreas afins (resolução CFM 1.763/05, resoluções CNRM 10 e 11/05). A cirurgia geral moderna modificou-se drasticamente pela utilização de endoscopia em técnicas operatórias minimamente invasivas. É fácil perceber que não é mais útil ao cirurgião cardiovascular cursar esta área, agora tão desmembrada, na tentativa de qualificar-se a seguir em um programa de residência médica em cirurgia cardiovascular. O tempo gasto em adquirir conhecimento e habilidades na cirurgia geral tem que ser gasto agora no aprendizado das novas tecnologias que estão sendo incorporadas na nossa especialidade.

O exemplo recente da Neurocirurgia, excluindo o pré-requisito em cirurgia geral ou em neurologia clínica, é bem ilustrativo dos avanços que tiveram que ser incorporados por essa especialidade, motivando estas mudanças de rumo na formação dos profissionais do futuro. Para exemplificar, citamos: a inserção de stents em lesões estenóticas das artérias carótidas, a inserção de dispositivos em artérias intracerebrais para tratamento de aneurismas e de outras doenças.

Incorporamos, no atual programa que estamos propondo, os conteúdos da cirurgia geral básica, que devem fazer parte da formação de todo cirurgião, declinando, pelas razões descritas, da necessidade de cursar nas diferentes áreas em que a cirurgia geral se desmembrou.

Neste momento, nos Estados Unidos, as sociedades médicas da especialidade (como AATS e STS) estão discutindo a redução drástica dos anos dedicados como pré-requisito em cirurgia geral, bem como as sociedades de cirurgia cardiovascular e congêneres européias (como a EACTS e EACS) estão propondo a abolição dos pré-requisitos com aumento para quatro anos na formação específica. Todas elas utilizando como argumentos a necessidade de inclusão das novas tecnologias na formação do residente de cirurgia cardiovascular. Foram criadas escolas para re-treinamento dos treinados, ou seja, aqueles que terminaram a sua formação tradicional em cirurgia cardiovascular poderem adquirir o conhecimento e as habilidades necessárias ao domínio das novas tecnologias.

Há um forte apelo neste momento para a atuação competente no mercado de trabalho e da formação de equipes multiprofissionais que, atuando em conjunto, possam resolver com menor risco e mais segurança para o paciente submetido a procedimentos híbridos executados por membros de equipes de áreas afins.

Na Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV), as provas para a habilitação ao título de especialista têm demonstrado pelo porcentual de aprovados que não há diferença significativa entre os que provieram dos programas em que o pré-requisito é exigido e naqueles que provieram dos Centros de Ensino e Treinamento (CETS) da SBCCV que não exigem o pré-requisito.

Por outro lado, a SBCCV tem nos seus líderes do passado e do presente um contingente significativo de pioneiros na especialidade, espalhados por todo território nacional e que foram formadores de serviços de excelência, que dominam o panorama científico da especialidade no país e que jamais cursaram a cirurgia geral como pré-requisito, entrando direto em programas de treinamento da especialidade.

Portanto, o foco da nossa atenção na formação dos novos residentes, bem como a oportunidade de re-treinamento dos treinados, exige modificações nos rumos destes programas na especialidade, para que possamos nos manter de forma competitiva no exigente mercado de trabalho em franca transformação, mantendo níveis de excelência na prestação de serviços e na segurança dos pacientes.

O conceito de um novo cirurgião cardiovascular deve, obrigatoriamente, incorporar na sua formação, além dos métodos tradicionais de diagnóstico e terapêutica, um conjunto de habilidades intervencionistas que não necessitem de grandes incisões, circulação extracorpórea, parada cardíaca e abertura do coração, propiciando maior conforto por menor trauma, menor nível de dor, reduzida permanência no hospital e diminuição das potenciais complicações. Tudo isto associado a bons resultados, convalescência mais rápida e retorno a uma vida laborativa útil.

A sobrevivência de uma especialidade passa por uma capacidade de seus membros de assimilarem as novas tecnologias e de contribuírem de forma criativa com o seu desenvolvimento, como protagonistas e não como coadjuvantes ou excluídos.

Não esqueçamos de uma lei implacável da evolução das espécies: "Não sobrevive o mais forte, mas sim aquele com maior capacidade de adaptação às mudanças do meio."


CCBY All scientific articles published at rbccv.org.br are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY