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ARTIGO DE REVISÃO

Resistência à aspirina e aterotrombose

Sthefano Atique GabrielI; Camila Baumann BeteliI; Rodrigo Seiji TaniguchiI; Cristiane Knopp TRISTÃOI; Edmo Atique GabrielII; José Roberto Pretel Pereira JobIII

DOI: 10.1590/S0102-76382007000100017

INTRODUÇÃO

As síndromes coronarianas agudas, incluindo angina estável, infarto do miocárdio sem elevação do segmento ST, infarto do miocárdio com elevação do segmento ST e morte súbita, são responsáveis por mais de dois milhões de hospitalizações e 30% de todas as causas de morte nos Estados Unidos [1,2]. No Brasil, as doenças cardiovasculares constituem a principal causa de morte, respondendo por 1/3 dos óbitos no país [3]. Segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do DATASUS do Ministério da Saúde, o coeficiente de mortalidade por doença cardiovascular é de, aproximadamente, 442/100.000 habitantes [3]. Estas entidades clínicas são conseqüências da ruptura de placa aterosclerótica ou fissura importante, com agregação de plaquetas e formação de trombos suboclusivos ou oclusivos [1,2]. A ruptura desta placa expõe seu conteúdo lipídico central e promove a adesão plaquetária e a ativação da cascata de coagulação [1,2]. As plaquetas ativadas liberam diversas substâncias vasoativas, incluindo tromboxane A2 (TXA2) e adenosina difosfato (ADP), que promovem a adesão plaquetária e hemostasia primária [1,2]. A hemostasia secundária ocorre como resultado da conversão de fibrinogênio em fibrina, mediado pela trombina, e subseqüente estabilização do agregado plaquetário [1,2].

No tocante a fenômenos aterotrombóticos, o inibidor plaquetário mundialmente utilizado é a aspirina [4,5]. Muitos estudos demonstraram a eficácia da aspirina tanto na prevenção primária quanto secundária de infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e mortes por doenças cardiovasculares [4,5]. Uma metanálise recente revelou que, entre pacientes com alto risco vascular, a terapia com aspirina esteve associada à redução de 34% na prevalência de infarto do miocárdio não fatal, 25% no acidente vascular cerebral não fatal e 18% em todas as causas de mortalidade [6].

A aterotrombose, entretanto, consiste em um processo fisiológico complexo, e o risco absoluto de eventos vasculares recorrentes entre pacientes usuários de aspirina permanece elevado, sendo estimado entre 8% a 18% após dois anos [1,2]. Isto sugere que os efeitos antiplaquetários da aspirina podem não ser homogêneos para todos os pacientes e/ou que agentes terapêuticos múltiplos podem ser necessários para adequadamente bloquear a função plaquetária [1,2].

As medidas da agregação plaquetária, da ativação plaquetária e do tempo de sangramento confirmam a variabilidade das respostas antitrombóticas dos pacientes ao tratamento com aspirina [7]. Estudos clínicos prospectivos têm demonstrado que a diminuição da resposta à terapia com aspirina está associada a um aumento do risco de eventos aterotrombóticos [8,9]. Estas observações contribuem para a consolidação do conceito de resistência à aspirina - que descreve a falha da aspirina em produzir uma resposta biológica satisfatória, como inibição plaquetária, ou a incapacidade da aspirina em prevenir eventos aterotrombóticos [1,2]. Além disso, dada a prevalência das doenças cardiovasculares, a identificação e análise clínica dos pacientes insensíveis aos efeitos antiplaquetários da aspirina pode contribuir na busca de alternativas para se alcançar níveis apropriados de inibição plaquetária.

ASPIRINA

Mecanismo de ação

Quando a camada íntima dos vasos sanguíneos é lesada, como por exemplo após um ferimento ou a ruptura de uma placa aterosclerótica, o colágeno subendotelial e os fatores de von Willebrand são expostos para a circulação sanguínea. As plaquetas séricas aderem ao colágeno subendotelial e aos fatores de von Willebrand por meio das glicoproteínas Ia/IIa e aos receptores Ib/V/IX. A adesão plaquetária estimula a ativação plaquetária, que promove mudanças na forma das plaquetas e liberação de quantias elevadas de cálcio para dentro das plaquetas [10,11].

O aumento da concentração de cálcio ionizado livre dentro das plaquetas acarreta diversas conseqüências. Primeiro, induz a uma mudança conformacional nos receptores plaquetários da glicoproteína IIb/IIIa, permitindo que as plaquetas se liguem a proteínas adesivas da circulação, tais como o fibrinogênio. Segundo, catalisa a liberação de moléculas ativas dos grânulos plaquetários para a circulação sanguínea, onde elas podem se ligar aos receptores de superfície de plaquetas adjacentes - estimulando suas ativações. Terceiro, promove a ação da fosfolipase A2 - responsável pela produção de ácido araquidônico [10,11].

O ácido araquidônico plaquetário é convertido em TXA2, em uma reação catalisada pela enzima ciclooxigenase 1 (COX-1), para formar prostaglandina G2/H2, e tromboxane sintase, para formar TXA2. O TXA2 aumenta a expressão dos receptores de fibrinogênio na superfície plaquetária e é liberado na circulação, aonde interage com os receptores de tromboxane da superfície das plaquetas adjacentes, estimulando suas respectivas ativações. O TXA2 também age sinergicamente com outros produtos liberados pelas plaquetas ativadas, tais como, ADP, fibrinogênio e fator V, intensificando a ativação plaquetária. Além disso, o TXA2 é um potente vasoconstritor [10,11].

A aspirina (ácido acetilsalicílico) reduz a ativação plaquetária por meio da acetilação irreversível da COX-1, e, portanto, reduz a produção de TXA2 pelas plaquetas. A inibição da COX-1 é rápida, saturável em baixas doses, isto é, dose-dependente, irreversível e permanente por toda a vida da plaqueta - visto que a mesma não apresenta maquinário biossintético para sintetizar novas proteínas. Após dose única de 325 mg de aspirina, a atividade da COX-1 plaquetária se recupera em aproximadamente 10% por dia devido à nova formação plaquetária. A aspirina também apresenta efeitos antitrombóticos dose-dependente sobre a função plaquetária e a coagulação sanguínea que não estão relacionados à sua habilidade de inibir a COX-1 plaquetária [12].

A aspirina pode também influenciar a hemostasia e as doenças cardiovasculares por mecanismos independentes da produção de prostaglandina (PG) [1,2]. Embora pouco claramente definido, os efeitos da aspirina não mediados por PG na hemostasia são postulados a serem dose-dependente e não relacionados à atividade da COX-1 [1,2]. Estes efeitos incluem antagonismo da vitamina K, redução da produção plaquetária de trombina, e acetilação de um ou mais fatores de coagulação [13]. A aspirina pode também prejudicar a função plaquetária ao inibir a ativação plaquetária mediada pelos neutrófilos [14]. Além disso, a aspirina pode potencialmente alterar a patogênese da doença cardiovascular ao proteger as lipoproteínas de baixa densidade da modificação oxidativa, ao melhorar a disfunção endotelial em pacientes com aterosclerose e ao atenuar a resposta inflamatória por agir como um antioxidante [14].

As propriedades antiinflamatórias da aspirina são evidentes, mas não claramente conhecidas [1,2]. O tratamento com aspirina mostrou inibir a disfunção endotelial mediada por processos inflamatórios, apesar do mecanismo responsável por este efeito ainda permanecer desconhecido [15]. Além disso, em pacientes normais, a terapia com baixas doses de aspirina mostrou reduzir a liberação plaquetária de interleucina 7 e reduzir os níveis plasmáticos desta citocina [15]. Estas observações sugerem que parte dos efeitos benéficos da aspirina podem ser mediados pela redução da inflamação vascular.

Farmacologia

As propriedades farmacocinéticas da aspirina caracterizam-se por rápida absorção do trato gastrintestinal e pico de concentrações plasmáticas dentro de 30 a 40 minutos de sua ingestão [16]. O efeito inibitório plaquetário significante é notado dentro de 60 minutos da ingestão, e uma dose única de 100 mg de aspirina bloqueia completamente a produção de TXA2 durante toda a vida das plaquetas, na maioria dos indivíduos [16]. A meia-vida plasmática da aspirina é de aproximadamente 20 minutos, mas a natureza irreversível da inibição da atividade da COX-1 plaquetária e a duração da supressão do TXA2 demonstram que os efeitos antitrombóticos da aspirina são mantidos com intervalos de dose de 24 a 48 horas [16].

Estudos randomizados demonstraram que os benefícios da terapia com aspirina são atingidos com uma ampla variedade de doses (30 a 1.500mg/dia), mas a dose diária ideal ainda não foi claramente determinada [6,7]. De maneira geral, regimes terapêuticos com elevadas doses não estão associados a benefícios adicionais significativos, mas podem, eventualmente, atenuar os efeitos antitrombóticos da aspirina e aumentar o risco de efeitos adversos indesejados [13].

Medida da função plaquetária

Medir a função plaquetária constitui uma árdua tarefa. Em resposta aos estímulos de ativação plaquetária, as mesmas liberam diversas quemoquinas, citocinas e fatores de crescimento dentro dos grânulos pré-formados; sintetiza prostanóides do ácido araquidônico; ou traduz ácidos ribonucléicos mensageiros em proteínas [1,2]. Além de desempenhar um importante papel na hemostasia, as plaquetas também participam dos processos inflamatórios e das respostas sistêmicas às lesões vasculares [1,2]. Apesar da complexa função plaquetária, os métodos laboratoriais utilizados para quantificar os efeitos antitrombóticos da aspirina se baseiam na medida da agregação plaquetária [1,2].

RESISTÊNCIA À ASPIRINA

Definição

O termo "resistência à aspirina" é atualmente utilizado na descrição de numerosos fenômenos, incluindo a inabilidade da aspirina para: proteger os pacientes de complicações trombóticas; causar prolongamento do tempo de sangramento; e inibir a biossíntese do TXA2 plaquetário [17]. A presença de eventos vasculares recorrentes em alguns pacientes, entretanto, apesar do uso prolongado de terapia com aspirina, deve ser apropriadamente denominado de falência terapêutica ao invés de resistência à aspirina - já que dada à natureza multifatorial da aterotrombose, apenas uma pequena fração de todas as complicações vasculares pode ser prevenida por uma única estratégia preventiva [17].

A resistência à aspirina, todavia, pode ser definida como resistência clínica ou laboratorial [18]. A primeira é definida como a falência da aspirina em prevenir eventos isquêmicos aterotrombóticos em pacientes com alto risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e cerebrovasculares [18]. Já a resistência laboratorial refere-se à falha da aspirina em inibir a produção do TXA2 plaquetário ou em inibir os testes de função plaquetária (agregação plaquetária), que são dependentes da produção plaquetária do tromboxane [18].

Prevalência

A prevalência de resistência à aspirina laboratorial varia de 5,5% a 61% [18]. Evidências iniciais de que alguns pacientes são resistentes à ação antiplaquetária da aspirina, entretanto, provêm do estudo de Mehta et al. [19], em que 30% dos pacientes com doença arterial coronariana apresentaram uma inibição mínima da agregação plaquetária após dose oral única de 650mg de aspirina. Já Buchanan et al. [7] observaram que o tempo de sangramento estava prolongado em 23 dos 40 pacientes internados para cirurgia eletiva de revascularização do miocárdio, que ingeriam 325mg/dia de aspirina, sugerindo uma prevalência de resistência à aspirina de 57,5%. Mais recentemente, Gabriel et al. [20] demonstraram que 12 dos 41 pacientes coronariopatas, usuários de aspirina na dosagem de 100mg/dia, como único medicamento antiagregante plaquetário, apresentaram valores de agregação plaquetária normo ou hiperagregantes, revelando a presença de resistência à aspirina em 29% destes pacientes.

Esta variabilidade de inibição plaquetária mediada pela aspirina não foi demonstrada apenas em pacientes com doença arterial coronariana e naqueles submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio; mas também em pacientes normais e portadores de doenças cerebrovasculares [21]. Apesar da aparente consistência destas observações, estas estimativas não são confiáveis devido ao pequeno tamanho das amostras, os diferentes tipos de pacientes analisados (variações quanto a idade, sexo, origem étnica e condições clínicas), as diferentes definições de resistência à aspirina, as incertezas quanto à resposta terapêutica ao medicamento e a falta de compatibilidade entre os diversos testes de função plaquetária. Logo, a prevalência exata de resistência à aspirina ainda permanece indeterminada.

Relevância clínica

As observações clínicas sugerem uma relação causal entre resistência à aspirina e o risco cardiovascular [1,2]. Um dos primeiros trabalhos que demonstraram uma associação entre dosagem laboratorial da resistência à aspirina e o risco de eventos vasculares graves foi um estudo de coorte de 181 pacientes com acidente vascular cerebral prévio, tratados com uma dose elevada de aspirina (500mg três vezes ao dia) [22]. Nesta pesquisa, foi reportada uma incidência de 30% de resistência à aspirina [22]. Já Grundmann et al. [23] relataram uma incidência significantemente maior de resistência à aspirina (34%) entre pacientes com acidente vascular cerebral ou ataque isquêmico prévio, quando comparado com pacientes assintomáticos com doença cerebrovascular conhecida. Entre pacientes com claudicação intermitente, submetidos à angioplastia vascular periférica, Mueller et al. [24] reportaram uma incidência de 40% para resistência à aspirina, sendo que após 18 meses de seguimento clínico, a resistência à aspirina esteve associada a um aumento de 87% no risco de reoclusão arterial. Em 2003, Gum et al. [9] reportaram uma coorte de 326 pacientes com doenças cerebrovasculares e coronarianas, tratados com 325mg/dia de aspirina e que foram acompanhados clinicamente por dois anos. Dos 17 (5%) pacientes diagnosticados com resistência à aspirina, cinco (29%) experimentaram sérios eventos vasculares ao longo dos dois anos. Mais recentemente, Chen et al. [8] reportaram uma associação entre resistência à aspirina e elevação da creatinina-quinase MB após procedimento percutâneo coronariano. Em sua população de 151 pacientes com doença arterial coronariana estável, a incidência de resistência à aspirina foi de 19.2%. Além disso, pesquisadores do estudo PURSUIT reportaram que o uso prévio de aspirina é um preditor independente do aumento do risco cardiovascular entre pacientes com síndromes coronarianas agudas [25]. Dos 9.461 pacientes, aqueles que previamente utilizaram aspirina apresentaram um risco 20% maior de sofrer eventos recorrentes nos próximos seis meses comparados com aqueles que não utilizaram o medicamento [25].

Embora amplamente utilizada na prevenção primária e secundária de eventos cardiovasculares e no manuseio de pacientes submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio, a dose diária ideal recomendada para terapia com aspirina ainda não foi claramente elucidada. Em 2001, as Diretrizes Brasileiras sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose [26] ressaltaram o uso de aspirina em doses acima de 100 mg/dia, para indivíduos que se encontrem sob alto risco para eventos cardiovasculares (prevenção secundária, diabéticos ou risco absoluto de eventos coronarianos ³ 20% em 10 anos), que não apresentem contra-indicações - sendo o grau de recomendação A e o nível de evidência 1. Já as Diretrizes de Cirurgia de Revascularização Miocárdica, Valvopatias e Doenças da Aorta [27] destacaram que pacientes submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio nas síndromes coronarianas agudas devem utilizar aspirina na dosagem de 100 a 325 mg/dia, iniciando nas primeiras 24 horas de pós-operatório e mantido indefinidamente. Em caso de intolerância à aspirina, é recomendado ticlopidina 250 mg/dia. Por outro lado, as Diretrizes de Doença Coronariana Crônica e Angina Estável [28] afirmam que todos os indivíduos portadores de angina estável devem utilizar aspirina; porém não recomendam dose ideal diária.

Apesar da dosagem preconizada para aspirina continuar variável (30 a 1500 mg/dia), com indicações terapêuticas antiplaquetárias em diversas entidades clínicas, como arritmias cardíacas, síndromes coronarianas agudas, doenças cerebrovasculares e vasculopatias periféricas, sabe-se, entretanto, que em 5% a 45% dos pacientes, os efeitos antiplaquetários da aspirina não ocorrem, permitindo a recorrência de eventos aterotrombóticos. Constitui-se, portanto, fundamental a necessidade de mais pesquisas no intuito de se estabelecer parâmetros individualizados, que contribuam na indicação de uma dosagem efetiva para a devida ação antiagregante plaquetária da aspirina. Além disso, o desenvolvimento de métodos e técnicas adequadas para a dosagem da eficácia da aspirina, como medicamento antiplaquetário, pode auxiliar na diminuição de eventos vasculares recidivantes pós uso da aspirina.

Potenciais mecanismos de resistência à aspirina

Apesar dos conhecimentos atuais sobre os efeitos antiplaquetários da aspirina, os mecanismos pelos quais alguns pacientes revelam-se resistentes à aspirina ainda não foram claramente estabelecidos [1,2]. A resposta para esta incógnita, provavelmente, encontra terreno sólido na combinação de propriedades genéticas, biológicas e clínicas, afetando diretamente e indiretamente a função plaquetária (Quadro 1) [1,2]. Da perspectiva clínica, os hábitos comportamentais, como por exemplo, o tabagismo; a aderência à terapia prescrita; as interações medicamentosas, como por exemplo, com antiinflamatório não-hormonais; e as durações do tratamento com aspirina, podem contribuir nas diferenças individuais no tocante à responsividade aos efeitos antiagregantes da aspirina [1,2]. Embora o tabagismo seja apontado por alguns pesquisadores como um potente ativador plaquetário e intensificador da trombogênese mediada por plaquetas, apesar da supressão do TXA2 pela aspirina, estas observações científicas não são consistentes, revelando a necessidade de mais pesquisas no sentido de verificar a influência do tabagismo sobre a resistência à aspirina [29]. Alguns pesquisadores afirmam que o aumento do risco de eventos vasculares recorrentes, em pacientes sob uso de aspirina, pode ser primariamente explicado pela não aderência dos mesmos ao tratamento. Cotter et al. [30] reportaram que, entre 73 pacientes usuários de aspirina diária após infarto do miocárdio, a porcentagem de eventos adversos, tais como morte súbita, infarto do miocárdio ou angina instável, dentro de 12 meses, foi maior entre os pacientes considerados não aderentes (42%), quando comparados com aqueles considerados aderentes (6%) ou biologicamente resistentes (11%). O papel dos antiinflamatórios não hormonais na atenuação dos benefícios antitrombóticos a longo prazo da aspirina foi reportado, porém permanece controverso [31]. Os antiinflamatórios não-hormonais não seletivos possuem uma forte afinidade de ligação por uma região específica da COX-1 plaquetária e podem prevenir a acetilação mediada pela aspirina. Entretanto, os estudos atuais não são consistentes ou definitivos em fornecer a relevância clínica desta potencial interação [1,2,31].



A duração da terapia também pode contribuir para a falta de resposta à aspirina. Pulcinelli et al. [32], recentemente, reportaram os efeitos de 2, 6, 12, e 24 meses de tratamento com aspirina (100 ou 330mg/dia), sobre o ADP e a agregação plaquetária induzida por colágeno, entre 150 pacientes com evidências clínicas de aterotrombose. Apesar da adequada inibição plaquetária após dois meses de tratamento, a longo prazo, o tratamento com aspirina está associado com progressiva redução da sensibilidade aos seus efeitos [32]. Os pesquisadores também afirmaram, concordando com outras observações prévias, que a sensibilidade à aspirina não é dose-dependente.

Os diversos caminhos para ativação plaquetária e os seus receptores também podem contribuir para a gênese da resistência à aspirina. Mais especificamente, os caminhos envolvendo os ativadores plaquetários não dependentes de TXA2, tais como trombina, ADP, epinefrina e colágeno, podem evitar o efeito inibitório mediado pela aspirina conduzindo a uma ativação plaquetária e trombose. A agregação plaquetária induzida por catecolaminas é, por exemplo, um dos caminhos que podem não ser adequadamente inibidos pela aspirina [1,2]. Hurlen et al. [33] reportaram que, entre pacientes com infarto do miocárdio prévio, a aspirina atingiu efeitos antiplaquetários satisfatórios no repouso, mas falharam em inibir o aumento da agregação plaquetária induzida por exercícios. Esta observação sugere que os efeitos antiplaquetários da aspirina podem ser superados ao longo de períodos de aumento da atividade do sistema nervoso simpático, como durante exercícios ou estresse físico. Além disso, os pacientes que não respondem à aspirina podem apresentar aumento da sensibilidade plaquetária ao colágeno [34].

Caminhos alternativos para síntese do TXA2 e a identificação de componentes semelhantes à prostaglandina (isoprostanos) também fornecem potenciais explicações para a síndrome de resistência à aspirina. A biossíntese de TXA2 não sensível à aspirina pode ocorrer como resultado de uma indução da COX-2 em células não plaquetárias (monócitos/macrófagos ou células endoteliais), resultando de um estímulo inflamatório local [35]. Estas células também podem liberar TXA2 ou fornecer seu respectivo precursor, PGH2, para inibição plaquetária pela aspirina. Além disso, a COX-2 está presente nas plaquetas recém-formadas e pode contribuir para os níveis detectáveis da síntese de TXA2, durante os períodos de "turnover" plaquetário [14]. Os isoprostanos, resultantes da peroxidação lipídica, circulam em elevadas concentrações nos pacientes com angina instável, diabetes mellitus, hiperlipidemia e nos tabagistas. Além disso, agindo como vasoconstritores, os isoprostanos podem desempenhar um papel na amplificação da resposta plaquetária aos outros agonistas [13].

A interação das plaquetas com outras células, tais como eritrócitos ou células endoteliais vasculares, também pode afetar a inibição mediada pela aspirina. Foi demonstrado, por exemplo, que os eritrócitos induzem a um aumento na síntese plaquetária de TXA2 e liberação de serotonina, tromboglobulina-beta, e ADP. Investigações prévias entre pacientes com doenças vasculares demonstraram que a aspirina (200 a 300mg/dia) incompletamente bloqueia a reatividade plaquetária em mais de dois terços dos pacientes na presença de eritrócitos, apesar da adequada inibição da síntese de TXA2 plaquetária [17,18]. O aumento da agregação de monócitos às plaquetas circulantes, durante eventos aterotrombóticos agudos, representa uma ligação entre processos inflamatórios e trombose. Há crescentes evidências de que as interações entre os receptores CD40-CD40 possam desempenhar um importante papel na ativação plaquetária, trombose arterial e os caminhos de inflamação vascular mediado por plaquetas [36].

Por fim, a resistência à aspirina também pode ser explicada parcialmente por diferenças genéticas nos genes da COX-1 ou nos complexos receptores da glicoproteína IIb/IIIa. Polimorfismos da subunidade IIIa foi identificada, e alelos específicos, PlA1/A2 e PlA2/A2, estão associadas a um aumento da formação de trombina e a um baixo limiar de ativação plaquetária, liberação de grânulos alfa e ligação do fibrinogênio [35]. Embora ainda não comprovado, foi sugerido que mutações e/ou polimorfismos dos genes da COX-1 também podem ajudar a explicar a base estrutural da resistência à aspirina em alguns pacientes [35].

Tratamento da resistência à aspirina

A melhor maneira de se tratar a resistência à aspirina, e, portanto melhorar a eficácia da aspirina em prevenir eventos vasculares aterotrombóticos, consiste na identificação e no tratamento da causa responsável pela resistência à aspirina [18].

As alternativas terapêuticas adequadas incluem identificação e tratamento das causas não aterotrombóticas de eventos vasculares, que provavelmente não responderão à aspirina, como por exemplo, antibióticos para endocardite infecciosa e corticóides para arterites; melhoria na aderência terapêutica do paciente à aspirina; evitar o uso de medicamentos que podem interagir de modo adverso com os efeitos da aspirina, como o ibuprofeno; abandono do tabagismo; aumentar a freqüência da administração da aspirina; e substituir ou associar a aspirina a outras drogas antiplaquetárias, capazes de inibir outros caminhos responsáveis pela ativação plaquetária, como bloqueio dos receptores do ADP, antagonistas dos receptores do tromboxane, ou via final comum da agregação plaquetária, como com o bloqueio dos receptores intravenosos da glicoproteínas IIb/IIIa [17,18].

Entretanto, apesar destas alternativas terapêuticas parecerem suficientes, elas não são necessariamente efetivas e seguras. Por exemplo, o aumento da dose da aspirina a fim de aumentar a supressão da COX-1 plaquetária parece lógico; todavia, evidências mostram que baixas doses de aspirina são tão eficazes quanto altas doses na prevenção de eventos cardiovasculares [18]. Além disso, estudos randomizados afirmam que a adição de clopidogrel à aspirina, em pacientes com síndromes coronarianas agudas ou submetidos a intervenções coronarianas percutâneas, melhora os resultados sem prejuízos adicionais [37].

Mais pesquisas, portanto, são necessárias no intuito de determinar a efetividade e segurança de outros tratamentos alternativos para resistência à aspirina, além de identificar quais fatores estão associados a uma resposta favorável ou desfavorável à mesma.

CONCLUSÃO

A resistência à aspirina permanece um fenômeno altamente prevalente em pacientes que necessitam dos benefícios antitrombóticos por ela determinados, além de representar uma entidade biologicamente importante e válida, com implicações clínicas significantes. É importante ressaltar, ainda, que as dosagens laboratoriais, que evidenciam ausência de resposta aos efeitos antiagregantes da aspirina, são preditoras do aumento do risco de futuros eventos aterotrombóticos.

As principais incertezas que ainda necessitam ser claramente solucionadas quanto à resistência à aspirina são:

1. A falta de uma definição padronizada e um método validado de identificação da resistência à aspirina;

2. A desconhecida prevalência de resistência à aspirina dentro da população;

3. A ausência de um mecanismo biológico claro para resistência a aspirina;

4. O não completo entendimento dos adequados mecanismos da ação da aspirina relacionados à dosagem diária, as variações de seus efeitos ao longo do tempo, a sua interação com outros fármacos, hormônios e drogas e marcadores genéticos de sua atividade;

5. A ausência de uma estratégia terapêutica comprovada para os indivíduos afetados.

Apesar da resistência aos efeitos antitrombóticos da aspirina, este medicamento continua a participar da poderosa e consagrada terapia contra complicações aterotrombóticas das doenças cardiovasculares.

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