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ARTIGO ORIGINAL

Tempo de circulação extracorpórea como fator risco para insuficiência renal aguda

Fábio Papa TaniguchiI; Ademar Rosa de SOUZAII; Antonio Sérgio MartinsIII

DOI: 10.1590/S0102-76382007000200008

INTRODUÇÃO

A disfunção renal no pós-operatório de cirurgia cardíaca é fator de risco para mortalidade hospitalar e menor sobrevivência [1,2]. É complicação freqüente no pós-operatório de cirurgia cardíaca, com incidência relatada entre 1% e 31% [3-7]. As causas para disfunção renal são multifatoriais, sendo que a circulação extracorpórea (CEC)[8] apresenta efeitos deletérios na função renal [9]. O estado não fisiológico da CEC ativa as cascatas inflamatórias e anormalidades da coagulação que alteram a função renal. Pacientes com disfunção renal prévia quando submetidos a cirurgia cardíaca apresentam progressão da lesão renal com influência na sobrevida tardia [10,11].

O objetivo deste estudo é avaliar a influência do tempo de circulação extracorpórea como fator de risco para alteração da função renal.


MÉTODO

Foram avaliados, de forma prospectiva e consecutiva, os pacientes submetidos a cirurgia cardíaca no Hospital de Base da 7° Região, em Bauru, São Paulo, no período de janeiro a agosto de 2003. O Comitê de Ética local aprovou a realização do estudo. Os critérios de exclusão foram idade menor que 18 anos e insuficiência renal pré-operatória com necessidade de diálise.

Anestesia

Indução e manutenção da anestesia foram realizadas com sulfentanila (0,5 a 0,9 µg/kg seguidos de 0,4 a 0,8µg/kg/h) e midazolam (0,05 a 0,1 mg/kg seguidos de 0,1mg/kg/h). Isoflurano suplementar (0,5 a 1,0%) foi administrado por via inalatória. Brometo de pancurônio (0,1 mg/kg) foi utilizado como relaxante muscular.

Na sala de operações, foi realizada monitorização com eletrocardiograma contínuo pelas derivações DII e V5 (MPC-10, TEB, São Paulo, Brasil), com oximetria e com capnografia (DX-7100, Dixtal, São Paulo, Brasil). A pressão arterial média (PAM), obtida por dissecção da artéria radial, também foi monitorada (UM62009, Braile Biomédica, São José do Rio Preto, Brasil). Acesso venoso central foi providenciado por dissecção venosa da veia cubital ou punção da veia subclávia direita. Foi utilizado termômetro digital (UM62009, Braile Biomédica, São José do Rio Preto, Brasil) na avaliação da temperatura nasofaríngea.

Circulação extracorpórea

Anticoagulação foi realizada com heparina sódica para manutenção do tempo de coagulação ativado superior a 480s. O circuito de CEC foi preenchido com 1,8L de solução de Ringer lactato, 50 ml de manitol a 20%, 10 ml de gluconato de cálcio a 10%, 10 ml de sulfato de magnésio a 10%, 500mg de hidrocortisona, 750mg de cefuroxima e 5000UI de heparina.

Durante a CEC, foi realizada hipotermia a 32ºC, com fluxo arterial não pulsátil de 2,4L/min/m2 e pressão de perfusão entre 60 e 80 mmHg. Proteção miocárdica foi realizada com cardioplegia sangüínea hipercalêmica anterógrada intermitente. Foi realizada transfusão sanguínea, durante a CEC, para manutenção de hematócrito acima de 17%. No processo de interrupção da CEC, manteve-se a PAM acima de 65mmHg. O coração foi assistido por marca-passo externo quando a freqüência cardíaca foi menor que 70bpm. Foi administrada dobutamina rotineiramente, com dose inicial de 3µg/kg/min. Noradrenalina foi utilizada se a PAM fosse menor que 65mmHg. Foi administrada protamina (1mg para cada 100 UI de heparina). Foi realizada antibioticoterapia profilática com cefuroxima por 48 horas no PO.

Variáveis analisadas e definições

As variáveis avaliadas foram idade, peso, altura, superfície corpórea, sexo, tempo de perfusão, tempo de anóxia, tipo de cirurgia, menor hematócrito durante a CEC, presença de hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, doença vascular periférica e infarto do miocárdio prévio.

A creatinina sérica pré-operatória (CrPré) foi determinada antes da cirurgia. A creatinina sérica pós-operatória foi avaliada no 1º, 2º e 5º dias de pós-operatório. A creatinina pico pós-operatória (CrPós) foi definida como o maior valor de creatinina sérica determinada no pós-operatório. A diferença em percentual da creatinina (%DCr) é definida como a diferença da CrPré e CrPós representada em porcentagem da CrPré.

O clerance de creatinina estimado foi calculado pela fórmula de Cockroft-Gault: clearance de creatinina=(140-idade) x peso (kg)/(creatinina sérica x 72 [x0,85 para mulheres]).

O clerance de creatinina foi calculado no pré-operatório, 1º, 2º e 5º pós-operatórios.

Quando necessário, foi realizada hemodiálise para o tratamento da hiperpotassemia, da hipervolemia, da uremia ou acidose metabólica por insuficiência renal aguda (IRA)

Estratificação dos grupos

Os pacientes foram estratificados pelos critérios de Boldt et al. [12], em dois grupos, grupo CEC£70 minutos, composto por pacientes cujo tempo de CEC foi menor ou igual a 70 minutos, e , grupo CEC³90 minutos, composto por pacientes com tempo de CEC maior ou igual a 90 minutos.

Análise estatística

Os dados das variáveis contínuas são apresentados na forma de média+desvio padrão. Variáveis ordinais são apresentadas na forma de freqüência (%). O teste de qui-quadrado ou teste exato de Fischer foi utilizado para a análise das variáveis ordinais. Os grupos foram comparados pelo teste T Student para amostras não pareadas. A análise de variância de duplo fator para medidas repetitivas com análise post-hoc de Bonferroni foi utilizada na análise do clearance de creatinina dentro de cada grupo. O nível de significância estabelecido foi de 5%. Foi utilizado o programa de análise estatística SPSS® versão 11.0 (SPSS, Chicago, IL, EUA).


RESULTADOS

Foram avaliados 116 pacientes submetidos a cirurgia cardíaca com CEC no período e excluídos 28 pacientes que apresentaram tempo de CEC entre 70 e 90 minutos.

Para todos os pacientes, a idade média foi de 56,74+15,37 anos, sendo 56 mulheres, com tempo médio de CEC de 74,70+29,44 minutos. Foram realizadas 91 revascularizações do miocárdio e 25 cirurgias valvares.

As características demográficas e variáveis intra-operatórias para os grupos são demonstradas na Tabela 1. Os dados pós-operatórios estão na Tabela 2, na qual é observado aumento da creatinina sérica em 0,18+0,41 para grupo CEC£70min e 0,42+0,44 para o grupo CEC³90min (p=0,005). Também observa-se que a Dcreat% foi de 117,90+32,39% e 138,46+42,21% para os grupos (p=0,004).






A Figura 1 demonstra o clearance de creatinina de acordo com o dia da cirurgia para os grupos. Não houve diferença estatística entre o ClCreatbasal e o ClCreat5PO (p>0,05) para os dois grupos.


Fig. 1 - Alteração do clearance de creatinina
ClCreatbasal=clearance de creatinina pré-operatório, ClCreat1PO=clearance de creatinina no primeiro pós-operatório, ClCreat2PO=clearance de creatinina no segundo pós-operatório, ClCreat5PO=clearance de creatinina no quinto pós-operatório



Houve diferença estatística (p=0,018) para IRA entre os grupos. O grupo CEC³90min apresentou 12,5% de incidência versus 1,3% do grupo CEC=70min. O odds ratio para diálise foi 10,71(95% IC, 1,20-95,18).


DISCUSSÃO

Este estudo observacional avaliou a influência do tempo de CEC na função renal pós-operatória e no desenvolvimento de IRA. Foi observado que o tempo de CEC correlacionou-se com disfunção renal no pós-operatório e com incremento na necessidade de diálise.

Idade avançada, diabetes mellitus, disfunção renal pré-operatória, doença vascular periférica e peso corpóreo são conhecidos fatores de risco pré-operatório no desenvolvimento de IRA [6,13-15]. Apesar da ampla utilização da cirurgia cardíaca sem CEC e do emprego de novos equipamentos e fármacos na prevenção da disfunção renal pós-operatória, a incidência de insuficiência renal permanece elevada, sendo a IRA um problema desafiador em cirurgia cardíaca [16,17].

A CEC desencadeia importante resposta inflamatória em cirurgia cardíaca [18,19], sendo observado que é significativamente menor quando o tempo de CEC é inferior a 70 minutos [20]. A disfunção renal em cirurgia cardíaca avaliada pelo tempo de CEC em até 70 minutos ou superior a 90 minutos foi analisada em pacientes com creatinina sérica em até 200mmoL/dL (1,7mg/dl) no pré-operatório. Neste estudo, foram avaliados 100 pacientes até o 2ºPO, tendo sido relatadas alterações de enzimas tubulares renais, como a N-aceti-ß-galactosaminidase e gluationa transferase [12]. A evolução da creatinina sérica e clearance, em nosso estudo, foi realizada até o 5ºPO e foi utilizada diálise como critério para IRA. Ainda, deve ser considerado que 12,9% de nossos pacientes apresentam creatinina sérica maior que 1,7mg/dL.

Também foi observada a influência negativa do tempo de CEC na função renal pelo aumento da creatinina sérica, da variação da creatinina sérica e maior incidência de diálise em pacientes com tempo de CEC maior que 90 minutos. O odds ratio foi superior a 10 vezes para diálise entre os grupos, sendo consoante com um estudo multicêntrico, com mais de 2400 pacientes, que excluiu pacientes com creatinina sérica pré-operatória superior a 2,0mg/dl, e relatou que, quando o tempo de CEC é superior a 3 horas, o risco de IRA é 4 vezes superior ao limite de 2 horas [3].

O maior tempo de CEC possibilita o aumento no risco de hipotensão arterial com hipoxemia renal local pela maior exposição à CEC [3,13-14]. Ainda, o maior tempo de CEC está associado ao aumento de citocinas pró-inflamatórias como o TNF-a, IL-1, IL-6 e endotoxinas, que podem explicar a lesão tubular e deterioração da função renal [12,20].

Durante a CEC, episódios de embolia devem ser considerados como fator de risco potencial para infartos renais e conseqüente diminuição da função renal [21,22]. Recentemente, tem sido discutido se a não utilização da CEC preserva a função renal na revascularização do miocárdio [23]. Marcadores sensíveis de lesão tubular renal, como o N-acetil-ß-D-glucosaminidase, estão aumentados em pacientes com CEC [24]. Uma recente metanálise demonstrou que diálise é menos freqüente em pacientes submetidos a revascularização do miocárdio sem CEC [16].

São várias as limitações deste estudo. Primeiro, trata-se de estudo observacional em um único centro. Segundo, a amplitude de variação dos resultados das variáveis pode conduzir a erros que não demonstraram correlação, apesar de significativas. Terceiro, os dados apresentados não permitem avaliar a duração da CEC, do fluxo e da pressão de perfusão independentemente. Finalmente, o tratamento dialítico pode ter sido iniciado após o 5º dia de pós-operatório.



CONCLUSÃO

O desenvolvimento de IRA no pós-operatório de cirurgia cardíaca foi mais freqüente em pacientes com tempo de CEC superior a 90 minutos, quando comparado ao grupo menor que 70 minutos.


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