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ARTIGO ORIGINAL

Revascularização do miocárdio com emprego de ambas artérias mamárias internas em pacientes com diabetes mellitus

Stevan Krieger MARTINSI; Magaly Arrais dos SantosII; Freddy H. Ponce TIRADOI; Francisco C. E. MARTINS JRIII; Hassan F. MALATIII; Adib Domingos JateneII; Luiz Carlos Bento de SouzaII

DOI: 10.1590/S0102-76382007000300004

INTRODUÇÃO

O diabetes mellitus (DM) afeta aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo e é importante fator de morbidade, aumentando em 2-4 vezes o risco de doença arterial coronariana (DAC) nos pacientes expostos. A prevalência entre pacientes submetidos a revascularização do miocárdio (RM) varia de 12-30%, sendo preditivo de mau prognóstico para infarto agudo do miocárdio (IAM), em insuficiência cardíaca congestiva (ICC) e em todos os tipos de RM, seja percutânea ou cirúrgica [1]. Apesar de ter havido melhorias em prevenção primária e secundária, que levaram à diminuição dos índices de mortalidade por doença cardiovascular na população em geral, há menor influência em diabéticos, que apresentam altos índices de mortalidade por eventos cardiovasculares [2,3].

A utilização da artéria mamária interna esquerda (MIE) como enxerto para RM cirúrgica é fato consagrado, uma vez que sua patência de longo prazo, com os conseqüentes benefícios clínicos associados, está bem documentada. É considerada padrão-ouro para implante em áreas nobres, preferencialmente à parede cardíaca ântero-septal, sendo com freqüência anastomosada à artéria interventricular anterior [4]. Seu emprego em pacientes diabéticos é preditivo independente de aumento de sobrevida [5].

Há registros na literatura atual que sugerem ser o uso das duas mamárias internas (MIs) ainda mais benéfico do que uma, em seguimentos de 10 anos [6,7], o que parece ser particularmente importante em diabéticos, tendo sido demonstrados grandes benefícios com RM cirúrgica não somente em termos de sobrevida, mas também alívio sintomático e sobrevida livre de reintervenção [8]. Acredita-se que RM com uso exclusivo de enxertos arteriais seja um recurso valioso para se ampliar este benefício.

Apesar do uso da artéria mamária interna direita (MID) ter sido objeto de discussão por apresentar historicamente resultados discrepantes em relação à MIE, e de sua pequena aplicação rotineira (inferior a 4% dos casos de RM), estudos recentes têm demonstrado altos índices de permeabilidade tardia de enxertos de MID com menor incidência de reintervenções em longo prazo em comparação a enxertos venosos, sugerindo também vantagem em sobrevida. Tal benefício parece mais evidente em pacientes jovens, mas não se descarta que outros grupos de prognóstico menos favorável possam obter vantagens desta estratégia cirúrgica [9].

Reconhecidamente, DM é fator de risco importante para infecção e deiscência de ferida operatória [10] e, por isso, existe especial preocupação com diabéticos.

Com base em publicações anteriores, existe a inferência de que enxertos duplos de MIs não devem ser usados em diabéticos. As razões para tanto incluem a crença que esta estratégia está associada a índices elevados de infecção profunda de ferida operatória (FO) esternal, com conseqüente mediastinite, sepse e morte [11], além do tempo operatório adicional consumido para dissecção da segunda MI, fazem com que muitos cirurgiões acreditem que é um risco desnecessário dissecar ambas MIs nestes pacientes.

Lev-Ran et al. [12] demonstraram que dois enxertos de MIs para ramos da artéria coronária esquerda conferem sobrevida aumentada e livre de eventos adversos em diabéticos tratados com medicação oral. Porém, também sugeriram que o uso de duas mamárias em diabéticos do tipo 2, que necessitem do uso de insulina, possa resultar em maiores complicações de ferida operatória, dados que não têm apoio uniforme na literatura [13].

Apesar de persistirem dúvidas, têm sido incorporadas melhorias técnicas, como esqueletonização das mamárias [14,15], métodos de síntese esternal reforçada, e o uso endovenoso contínuo de insulina [16-18], que podem ter impacto positivo na diminuição da ocorrência de complicações de ferida operatória. O emprego de enxertos compostos, em "T" ou "Y" artificiais, pode aumentar o número de artérias coronárias tratadas com artérias e tenderia a maximizar o benefício de longo prazo.

Estudos atuais sugerem que diabéticos têm melhor evolução após RM do que angioplastia, e este benefício é, em grande parte, secundário ao emprego de enxertos de mamária [8,18], sendo que o uso de múltiplos enxertos arteriais parece ser vantajoso nestes pacientes [19]. Há evidência recente que duas MIs trazem benefícios quanto à sobrevida em longo prazo, embora não haja estudos randomizados que confirmem tais achados [20].


MÉTODO

Foi realizada análise retrospectiva dos pacientes submetidos a operação de RM isolada em nosso serviço, no período de janeiro de 1995 a agosto de 2005. Dos 4.569 procedimentos realizados no período, foram incluídos no estudo os 700 pacientes que tiveram ambas MIs dissecadas. Esta amostra foi separada em dois grupos: o grupo I, que consistia dos pacientes portadores de DM (n = 148) e o grupo II, que reuniu os não diabéticos (n = 552). Foi realizada análise de ambos grupos quanto às suas características, ocorrência de complicações pós-operatórias e mortalidade intra-hospitalar (Figura 1).


Fig. 1. Detalhamento da amostra. RM - revascularização do miocárdio, C/DM - diabético, S/DM - não diabético, MIs - mamárias internas



A seleção de pacientes foi feita no intra-operatório, pela combinação de dois fatores: anatomia coronariana e qualidade do esterno. A anatomia coronariana era considerada favorável se houvesse uma artéria de adequado calibre na parede lateral do ventrículo esquerdo com lesão importante (³ 70 %), sendo este vaso escolhido para receber a MID, que uma vez dissecada era levada até a artéria coronária escolhida por via retroaórtica através do seio transverso; o segundo fator era a qualidade do esterno, avaliada durante sua transsecção, sendo descartado o emprego da MID se houvesse osteoporose importante. Durante a dissecção dos enxertos, tomou-se cuidado para não abrir as cavidades pleurais.

As operações foram realizadas com circulação extracorpórea (CEC), sob hipotermia moderada (32º C) e utilizando pinçamento aórtico intermitente como método de proteção miocárdica, pinçando-se a aorta durante o tempo necessário para cada anastomose, seguido de período de reperfusão de aproximadamente dois minutos após cada período de isquemia. Terminadas as anastomoses se procedia ao reaquecimento, estabilização das condições hemodinâmicas, saída de CEC, reversão da heparina com doses adequadas de protamina. O esterno era fechado com reforço de fitas de aço Sternum-Band® (Ethicon), quando apresentava osteoporose, ou se o paciente fosse obeso importante (índice de massa corporal acima de 32); do contrário eram usados 8 fios de aço para síntese esternal. Subcutâneo e pele foram fechados de forma rotineira.


RESULTADOS

A amostra inicial era de 4.569 pacientes, cujas características demográficas estão apresentadas na Tabela 1.




Morbidade e mortalidade

Quanto aos pacientes diabéticos e não diabéticos sem distinção do uso de uma ou duas MIs, houve uma discreta vantagem quanto à mortalidade para os pacientes não diabéticos, porém sem significância estatística; o número de vasos tratados foi semelhante nos dois grupos (Tabela 2).




A amostra de 700 pacientes com uso de duas MIs está detalhada na Tabela 3. Nota-se que os pacientes diabéticos tiveram maior incidência de ICC, com diferença significativa quanto à classe funcional e à disfunção de contratilidade do ventrículo esquerdo.




O grupo de não diabéticos foi constituído de maior número de pacientes tabagistas e os diabéticos tiveram maior proporção de obesos.

A Tabela 4 discrimina as complicações ocorridas que necessitaram de reintervenção cirúrgica, não havendo diferença importante entre os dois grupos em estudo. Apesar do índice de complicações de FO ser maior nos diabéticos, não houve significância estatística em relação ao grupo de não diabéticos.




A mortalidade dos dois grupos não mostrou diferença significativa (Tabela 5).




DISCUSSÃO

É esperado grande aumento na prevalência de DM na população mundial durante os próximos anos, sendo previsto que, no Brasil, existirão mais de 11 milhões de diabéticos no ano 2030 [21]. Estes pacientes têm risco de morte três vezes maior do que a população geral, principalmente na faixa etária inferior aos 69 anos de idade e às custas de eventos cardiovasculares, que podem chegar a ser 80% das causas de morte [22]. Tal quadro justifica esforços para definir e implementar o tratamento adequado a ser oferecido para esta população específica.

O sucesso de longo prazo em operações de RM está diretamente relacionado à patência dos enxertos. Apesar dos dados de literatura serem controversos, há razões convincentes para justificar o risco de se dissecar duas mamárias em diabéticos com a intenção de aumentar o número de vasos enxertados com artérias, sendo o objetivo final, se possível, realizar RM totalmente arterial. Adicionalmente, foram incorporadas modificações técnicas que podem colaborar com este objetivo.

Esqueletonização

Foi recentemente sugerido que a técnica de esqueletonização de MI reduz o risco de complicações de FO esternal [15,22]. Evidências sugerem que a vascularização do esterno é menos prejudicada quando esta técnica é usada em comparação à dissecção pediculada; fornece maior extensão, alongando o enxerto em até 3 cm [22], o que poderia facilitar a utilização de enxertos compostos (em "T" ou "Y") [4], e o vaso ganha maior diâmetro. Faltam dados convincentes quanto à chance de se lesar o enxerto durante sua dissecção, o que poderia comprometer a viabilidade do mesmo e alterar as curvas de sobrevida de forma desfavorável [14]. Sem dúvida, trata-se de uma técnica mais complexa, que envolve curva de aprendizado e consome mais tempo operatório.

Emprego de enxertos compostos

A utilização de enxertos artificialmente construídos, em "T" ou "Y" artificiais, bem como anastomoses seqüenciais, podem maximizar o emprego de artérias, teoricamente, expandindo o benefício de longo prazo [23,24]. Apesar de encorajadoras, ainda faltam evidências adequadas para apoiar o uso rotineiro destas técnicas.

Síntese esternal reforçada

Reconhecendo o alto risco de deiscência e/ou infecção de FO, parece lógico deduzir que a utilização de métodos para reforço do esterno seria útil para prevenir tais eventos, porém reconhecimento precoce e tratamento agressivo parecem ainda a melhor conduta frente aos quadros de complicações infecciosas de FO [10,25].

Uso de insulina endovenosa contínua

Comparada com injeções subcutâneas fracionadas, a infusão contínua endovenosa de insulina induziu significativa redução dos níveis séricos de glicose, em estudo prospectivo de 2.467 pacientes consecutivos, o que pareceu melhorar sobremaneira os índices de infecção de FO [16]. Adicionalmente, pode haver efeito benéfico quanto à contratilidade cardíaca em períodos pós-isquêmicos. Por ser método simples e confiável, pode ser recomendado com maior freqüência, uma vez que geralmente é reservado para pacientes de difícil controle glicêmico somente com aplicações subcutâneas.


CONCLUSÃO

Nosso estudo mostrou incidência semelhante de morbidade e mortalidade entre diabéticos e não diabéticos submetidos a revascularização do miocárdio com o uso de dois enxertos de artéria mamária interna.

Seleção criteriosa de pacientes e técnica operatória apurada podem beneficiar pacientes diabéticos com a utilização de dois enxertos de artérias mamárias.


Nota do Editor
De acordo com a Nômina Anatômica, o correto é utilizar Artéria Torácica e não Artéria Mamária.



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