Criança de 6 anos de idade, sexo feminino, procurou serviço médico devido a mal-formação gastrointestinal. Durante o acompanhamento médico, foi diagnosticada ausência parcial de veia cava inferior, alteração congênita rara que envolve a drenagem vascular do segmento inferior do corpo. Realizados exames de imagem, os quais contribuíram para avaliação e descrição do caso. Mantido tratamento conservador com anticoagulante oral. Paciente apresenta boa evolução após longo tempo de acompanhamento cardiovascular.
A 6-year-old female child sought medical service due to a gastrointestinal malformation. During a medical follow-up a partial absence of the inferior vena cava was diagnosed, which is a rare congenital alteration, involving the vascular drainage from the inferior segment of the body. Imaging exams were performed, which contributed to evaluation and description of the case. Conservative treatment with an oral anticoagulant was maintained. The patient presents good evolution after a long-term cardiovascular follow-up.
INTRODUÇÃO
A ausência congênita de veia cava inferior (VCI) é uma rara malformação cardiovascular que resulta da atresia do segmento retro-hepático da veia cava, durante a embriogênese. Na maioria das vezes, está associada a anomalias cardíacas e abdominais. Pacientes sem outras malformações associadas podem ser assintomáticos e o diagnóstico ser um achado em exame de imagem.
O presente trabalho relata um caso de agenesia parcial de VCI, em paciente cardiologicamente assintomático, que procurou serviço médico devido à presença de malformação gastrointestinal.
RELATO DO CASO
Paciente de 6 anos de idade, sexo feminino, em acompanhamento no Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu devido à presença de ânus imperfurado, com exteriorização intestinal vulvar, sendo submetida à intervenção cirúrgica em 1997. Em 2003, foi detectado sopro sistólico +/4 em precórdio e a paciente foi encaminhada para investigação cardiológica. Ao exame físico, a criança apresentava freqüência cardíaca de 92 batimentos por minuto, pressão arterial sistêmica de 110/70 mmHg, sem sinais de insuficiência cardíaca. O ecocardiograma mostrou situs solitus em levocardia, vasos da base normoposicionados, septo interatrial e interventricular íntegros, valvas normais, função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo preservadas e anomalia cardiovascular não definida.
Foi realizada uma angiografia para melhor avaliação, a qual evidenciou ausência parcial da VCI e continuação da veia ázigos à esquerda, o sangue da porção renal e infra-renal derivando por uma calibrosa colateral para a veia hemiázigos que, por sua vez, se abre na veia cava superior esquerda persistente, esta drenando no átrio direito através do seio coronariano (Figura 1).
Fig. 1 - Angiografia venosa mostra o cateter-guia e seu trajeto percorrendo a veia hemiázigos e a veia cava superior esquerda persistente, a qual drena no átrio direito através do seio coronariano
A tomografia computadorizada de tórax e abdome também revelou agenesia parcial da VCI na porção supra-renal e dilatação da veia ázigos e hemiázigos (Figura 2). O paciente permanece em acompanhamento médico, apresenta um seguimento de dez anos e, atualmente, apresenta-se cardiologicamente oligossintomática.
Fig. 2 - Veia ázigos (VA) e veia hemi-ázigos (VHA) dilatadas; veias supra-hepáticas (VSH) e aorta (AO); sistema ázigos dilatado (seta), posicionado à esquerda da aorta, drenando as veias renais
DISCUSSÃO
A origem da VCI é um processo complexo que ocorre entre sexta e oitava semana de gestação, o qual coincide com o desenvolvimento do baço, fígado, coração e pulmão [1,2]. Esse processo envolve três pares de veias primitivas (veias póstero-cardinais, subcardinais e supracardinais), as quais desenvolvem extensas anastomoses entre si e depois regridem e atrofiam. A VCI é convertida em unilateral, posicionada à direita, no sentido caudal para cranial, nos seus segmentos pós-renal, renal, pré-renal e hepático. Quando ocorre de forma incompleta, esse processo pode resultar em vários tipos de anomalias, como agenesia parcial ou total de VCI [3]. Nesses casos, há uma dilatação compensatória do sistema ázigos para auxiliar a drenagem venosa do segmento inferior do corpo.
Aproximadamente, 90% dos casos de ausência de parcial de VCI ocorrem em sua porção supra-hepática, podendo estar presente em 0,6% a 2% em associação a outras cardiopatias congênitas e 0,3% a 0,5% em outras anomalias não cardíacas. Os defeitos cardíacos mais comuns incluem dextrocardia, comunicação interatrial e interventricular, estenose pulmonar ou combinações dessas malformações. Pode ocorrer em associação com transposição de víscera abdominal, disgenesia pulmonar e poliesplenia [4]. Essas anomalias não estavam presentes em nosso paciente. Entretanto, o caso relatado apresenta uma outra malformação congênita intestinal (ânus imperfurado), uma associação ainda não observada e descrita na literatura.
Quanto à anomalia vascular, a angiografia venosa e tomografia computadorizada tóraco-abdominal foram exames que ofereceram subsídios importantes para a compreensão e diagnóstico da doença em questão. Os exames mostraram ausência parcial da VCI e continuação com a veia ázigos à esquerda; o sangue da porção renal e infra-renal derivando por uma veia colateral dilatada para a veia hemiázigos que, por sua vez, se abre na veia cava superior esquerda persistente, esta drenando no átrio direito através do seio coronariano.
Em adultos, alterações congênitas de VCI são descritas como achados radiológicos ou de laparotomias. A veia ázigos dilatada à esquerda pode simular dissecção de aorta, massa mediastinal ou adenopatia paratraqueal na radiografia de tórax.
Pacientes sem outras malformações associadas podem ser assintomáticos, pois o sistema venoso colateral desenvolvido acaba sendo suficiente para drenar o sangue da metade inferior do corpo para o coração. Podem apresentar sopro cardíaco, o qual se confunde com a persistência de canal arterial devido sua topografia.
O tratamento da ausência parcial de VCI é conservador. A importância de conhecer esta doença é, principalmente, evitar intervenções cirúrgicas desnecessárias. Há descrições até de ligaduras inadvertidas de colaterais venosas, levando a óbito o paciente [1,6]. Porém, teoricamente, esta condição pode predispor trombose venosa profunda, pois o retorno do sangue inadequado através de vasos colaterais aumenta a pressão nas veias do membro inferior, favorecendo a estase venosa. Alguns autores preconizam de terapia anticoagulante nesses pacientes [3,5]. Nosso paciente faz uso de anticoagulante via oral, apresenta um seguimento de aproximadamente 10 anos e permanece assintomático do ponto de vista cardiovascular.
CONCLUSÃO
A ausência de VCI pode estar associada a alterações congênitas cardíacas e não cardíacas. O presente caso relata ausência parcial de VCI em paciente portador de ânus imperfurado, associação ainda não descrita. É importante o conhecimento desta entidade, pois a literatura descreve ligaduras inadvertidas de veia ázigos, o que é letal nesses pacientes, além disso, muitas vezes, podemos evitar toracotomias e laparotomias desnecessárias.
REFERÊNCIAS
1. Sandercoe GD, Brooke-Cowden GL. Developmental anomaly of the inferior vena cava. ANZ J Surg. 2003;73(5):356-60. [
MedLine]
2. Giordano JM, Trout HH 3rd. Anomalies of the inferior vena cava. J Vasc Surg. 1986;3(6):924-8. [
MedLine]
3. Cho BC, Choi HJ, Kang SM, Chang J, Lee SM, Yang DG, et al. Congenital absence of inferior vena cava as a rare cause of pulmonary thromboembolism. Yonsei Med J. 2004;45(5):947-51. [
MedLine]
4. Yun SS, Kim JI, Kim KH, Sung GY, Lee DS, Kim JS, et al. Deep venous thrombosis caused by congenital absence of inferior vena cava, combined with hiperhomocysteinemia. Ann Vasc Surg. 2004;18(1):124-9. [
MedLine]
5. Hamoud S, Nitecky S, Engel A, Goldsher D, Hayek T. Hipoplasia of the inferior vena cava with azygous continuation presenting as a recurrent leg deep vein thombosis. Am J Med Sci. 2000;319(6):414-6. [
MedLine]
6. Effler DB, Greer AE, Sifers EC. Anomaly of the vena cava inferior; report of fatality after ligation. J Am Med Assoc. 1951;146(14):1321-2. [
MedLine]