O presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, visitou a Argélia em março de 2006. Naquela ocasião, seu homólogo argelino, Abdelaziz Bouteflika, solicitou cooperação nas áreas de cirurgia plástica para tratamento de seqüelas de queimaduras e na área de cirurgia cardíaca pediátrica. As autoridades brasileiras presentes concordaram e iniciaram a elaboração de um projeto de cooperação visando capacitar, a longo prazo, profissionais argelinos nestas áreas específicas. Presente à comitiva presidencial brasileira, o então ministro da Saúde, Dr. Saraiva Felipe, juntamente com o embaixador do Brasil naquele país, Sérgio Danese, redigiu o texto do projeto que daria início ao acordo de cooperação internacional entre os dois países. No dia seguinte, o acordo foi ratificado pela assinatura dos dois presidentes e respectivos ministros da saúde.
Neste artigo, o foco é a nossa especialidade; assim, não abordaremos o andamento do projeto na área de queimados.
Ao regressar ao Brasil, Saraiva Felipe deu início à viabilização do projeto de cirurgia cardíaca pediátrica. A Agência Brasileira de Cooperação (ABC) foi acionada para formatar e dar apoio logístico ao projeto. Em parceria com a assessoria para assuntos internacionais do Ministério da Saúde, a ABC elaborou um caderno de encargos e dividiu o projeto em três etapas: prospecção, inspeção e execução.
Uma vez formatado o projeto, o Instituto Nacional de Cardiologia do Rio de Janeiro (INC) foi convidado pelo Ministério da Saúde para ser ator na concretização do mesmo.
A primeira etapa do projeto (prospecção) aconteceu em junho de 2007. A delegação brasileira, composta pela Dra. Regina Xavier, então diretora geral do INC, doutor José Alberto Caliani e Fábio Tagliari, assessor para assuntos internacionais do Ministério da Saúde, deslocou-se até Argel, capital da Argélia.
Iniciamos uma agenda de encontros com equipes médicas e hospitais argelinos que praticam cirurgia cardíaca de adultos há aproximadamente 20 anos. Visitamos três hospitais em Argel e um outro em Constantina, situada 500 km a leste da capital. Inicialmente, nossa atenção voltou-se para a elaboração de um diagnóstico preciso do "status quo" da cirurgia cardíaca, observando as condições sanitárias locais, nível técnico dos profissionais, resultados cirúrgicos, disponibilidade de equipamentos, serviço de hemoterapia, triagem odontológica prévia, unidade de pós-operatório, comissão de infecção hospitalar, material específico para cirurgias com circulação extracorpórea, disponibilidade de serviços de laboratório de análises clínicas e serviço de radiologia.
A percepção final foi positiva em relação à cirurgia cardíaca de adultos. As instalações e equipes locais praticam uma cirurgia de qualidade e com resultados satisfatórios.
Em seguida, abordamos os aspectos epidemiológicos diretamente ligados à cirurgia cardíaca pediátrica. No contexto atual, apenas um dos serviços visitados oferece condições razoáveis para a prática desta cirurgia. Porém, os resultados são contestados e considerados insatisfatórios pelos médicos e autoridades sanitárias daquele país. Para uma população de 38 milhões de habitantes, estima-se haver um contingente de aproximadamente três mil crianças portadoras de cardiopatias congênitas com indicação cirúrgica na fila de espera. Deste contingente, alguns são transferidos para países europeus (França, Suíça e Inglaterra) para correção de suas cardiopatias, a um custo médio de 30 mil euros por paciente. Soma-se a este custo excessivo o problema da comunicação lingüística, a retirada da criança e familiares de seu meio natural e as implicações psicológicas decorrentes da expatriação.
As autoridades argelinas compreenderam a necessidade de aumentar a oferta de atendimento e capacitar médicos e paramédicos para responder a esta demanda reprimida de pacientes em grande penúria clínica. Aí insere-se o escopo da cooperação brasileira, país escolhido para ajudar esta nação a superar um grave problema de saúde pública. O projeto foi então idealizado e aperfeiçoado em comum acordo para uma duração de 3 anos, com uma média de quatro a cinco missões anuais de 15 dias cada.
Nesta etapa de prospecção, elaboramos uma lista de material a ser adquirido pelos hospitais para se estruturar adequadamente um serviço de cirurgia cardíaca pediátrica. Finda a primeira etapa, a delegação retornou ao Brasil.
A segunda etapa (inspeção) aconteceu em novembro de 2007. Os profissionais Hamilton Torres, perfusionista, doutor Rodrigo Bracellos, médico anestesista e doutor José Alberto Caliani, cirurgião cardiovascular, deslocaram-se até Argel para inspecionar o material preconizado na etapa anterior. Foi feita checagem detalhada de todos os itens e concluímos que o material contemplava às exigências feitas anteriormente.
A terceira etapa (execução) aconteceu na primeira quinzena de dezembro de 2007. Os mesmos profissionais da segunda etapa novamente viajaram para Argel com intuito de iniciar a fase de execução propriamente dita.
No primeiro dia de trabalho, uma lista de 30 pacientes previamente explorados, com diagnóstico e indicação cirúrgica formalizados, foi apresentada. Deste grupo de pacientes, foram selecionados 20 e contra-indicados 10, por razões de problemas com a crase sanguínea e/ou infecciosos.
No dia seguinte, iniciou-se a atividade cirúrgica, que transcorreu em um período de 15 dias. Foram realizadas 17 operações, sendo 16 com auxilio de circulação extracorpórea (CEC) e uma intervenção paliativa de Blalock-Taussig modificado. As patologias foram assim distribuídas: 13 pacientes com Tetralogia de Fallot, duas comunicações inter-atriais, uma estenose supra-aórtica e uma atresia pulmonar. Exceto o paciente portador de atresia pulmonar, os demais beneficiaram de correção total de suas cardiopatias. Não houve óbito hospitalar e/ou tardio. Não houve morbidade. Ocorreu uma reoperação por hemorragia causada por distúrbio de coagulação. Após reabertura e lavagem da cavidade pericárdica, o problema foi solucionado.
Os três profissionais brasileiros foram assessorados por homólogos argelinos. Vários outros profissionais de outras cidades estiveram presentes, provocando boa interação e debates técnicos interessantes. Acreditamos ter havido boa empatia entre as diferentes equipes e setores do hospital de Argel com os profissionais brasileiros.
Ao final dos trabalhos, a mídia local promoveu uma coletiva de imprensa e o resultado da missão foi amplamente divulgado e comemorado como exemplo de sucesso de uma cooperação entre dois países do hemisfério sul.
Esperamos que este trabalho continue com êxito absoluto, fortalecendo a cirurgia cardíaca brasileira e, com humildade e perseverança, possamos levar "extra-muros" o grande legado que os pioneiros desta especialidade de nosso país nos deixaram como fiéis depositários.