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ARTIGO ORIGINAL

Influência do ácido épsilon aminocapróico no sangramento e na hemotransfusão pós-operatória em cirurgia valvar mitral

Ricardo Adala BenfattiI; Amanda Ferreira CARLIII; Guilherme Viotto Rodrigues da SilvaIII; Amaury Edgardo Mont'Serrat Ávila Souza DiasIV; José Anderson GOLDIANOV; José Carlos Dorsa Vieira PontesVI

DOI: 10.1590/S0102-76382010000400015

INTRODUÇÃO

A circulação extracorpórea (CEC), por se tratar de um evento que expõe o sangue a uma superfície não endotelizada, proporciona alterações à crase sanguínea, determinando uma particular tendência ao sangramento interferindo em toda a fisiologia do organismo [1].

Alguns autores demonstraram que o sangramento pós-perfusão pode ser devido à deficiente hemostasia cirúrgica e/ou aos distúrbios da coagulação e da fibrinólise, justificando a necessidade de se prosseguir com vários estudos relacionados aos seus efeitos e complicações, com a finalidade de que as adversidades do método possam ser contornadas ou minimizadas [2,3].

Durante a CEC, devido à hemodiluição, à hipotermia, ao trauma dos elementos figurados do sangue e à liberação de substâncias vasoativas, observam-se alterações nas plaquetas, nas proteínas relacionadas à coagulação e no sistema fibrinolítico [3-5]. Aproximadamente 10 a 20% dos pacientes submetidos à CEC (adultos e crianças) apresentam sangramento excessivo no pós-operatório imediato [3,4].

Os riscos associados à transfusão sanguínea e seus componentes incentivaram a pesquisa de agentes farmacológicos capazes de reduzir as perdas sanguíneas em consequência do uso da CEC [6,7].

As intervenções de natureza farmacológica na prevenção do sangramento pós-perfusão baseiam-se na administração de diversos agentes, dos quais os mais eficazes parecem ser o inibidor das proteases, como exemplo a aprotinina (APT) e os análogos da lisina, como o ácido épsilon aminocapróico (AEAC) e o ácido tranexâmico (AT). A eficácia do regime preventivo com a aprotinina está fartamente demonstrada na literatura. O elevado custo do produto e os diversos efeitos adversos têm estimulado a busca de alternativas de igual eficácia e custos mais baixos [6-11].

O ácido épsilon aminocapróico é um antifibrinolítico comumente usado em cirurgia cardiovascular, a fim de inibir a fibrinólise e reduzir o sangramento após a CEC. Esse fármaco bloqueia a produção do plasminogênio e do ativador do plasminogênio tecidual. O AEAC combina-se ao plasminogênio e à plasmina livre e impede que as enzimas fibrinolíticas liguem-se aos resíduos de lisina existentes na molécula do fibrinogênio, impedindo, assim, a fibrinólise [12].

As doses do ácido épsilon aminocapróico não estão bem padronizadas como as doses da aprotinina, contudo, é frequente a administração da dose de ataque de 150 mg/kg de peso. A administração deve ser continuada pela infusão contínua de 10 mg/kg/hora, durante quatro ou cinco horas, sendo a dose máxima em 24g, ou seja, um grama por hora [13].

Considerando a necessidade de padronização da dose utilizada do ácido épsilon aminocapróico e comprovação de sua eficácia, a presente investigação tem por finalidade analisar a influência do uso do ácido aminocapróico, em uma dose preconizada pelos autores, no sangramento e na necessidade de hemoderivados nas primeiras 24 horas em pós-operatório de cirurgias valvares mitrais.


MÉTODOS

Estudo prospectivo, realizado no Serviço de Cirurgia Cardiovascular do Hospital Universitário da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, aprovado pela comissão de ética hospitalar, tendo como critério de inclusão os pacientes submetidos à cirurgia valvar mitral e como critérios de exclusão pacientes portadores de insuficiência renal, doença hematológica, hepática ou digestiva, portadores de cardiopatia isquêmica, lesões de duas ou mais valvas, pacientes em vigência de choque cardiogênico e cirurgias de emergência, sendo que 42 pacientes foram inclusos no estudo por obedecerem a tais critérios.

As cirurgias valvares mitrais foram realizadas por esternotomia mediana longitudinal, hipotermia moderada a 27°C e CEC com bomba de roletes.

Os pacientes foram randomizados e divididos em dois grupos: grupo I - controle, e grupo II - ácido épsilon aminocapróico, ambos com 21 pacientes. No grupo I, foram infundidos 40 ml de solução fisiológica (SF) 0,9% em acesso venoso central, na indução anestésica, 80 ml no perfusato do circuito da CEC após heparinização plena, 40 ml após a reversão da heparina com sulfato de protamina na relação de 1:1 e 40 ml uma hora após o final da cirurgia na recuperação cardíaca pós-operatório; no grupo II foram infundidos 5 g de ácido épsilon aminocapróico nos mesmos tempos em que foram infundidos solução fisiológica no grupo I, num total de 25 gramas de ácido épsilon aminocapróico. Deve-se ressaltar que os pacientes e os médicos não sabiam quem estava usando o AEAC.

O critério de hemotransfusão foi avaliação do débito cardíaco estimado de acordo com as necessidades metabólicas e do transporte de oxigênio individualizado, ou seja, hemoglobina abaixo de 7 mg/dL, saturação venosa central de oxigênio menor que 50% e pressão arterial de oxigênio inferior a 25 mmHg, e volume de sangramento maior de 200 ml/h nas primeiras 4 horas.

Os grupos foram semelhantes em relação a fatores que pudessem influenciar no sangramento pós-operatório e na necessidade de hemotransfusão: idade, sexo, peso, altura, tempo de CEC, troca ou reconstrução valvar, provas de coagulação sanguínea e contagem de plaquetas. Foram avaliados os volumes de sangramento e de infusão de concentrados de hemácias nas primeiras 24h de pós-operatório. As infusões de hemocomponentes (plaquetas, plasma fresco e crioprecipitado) foram semelhantes entre os grupos.

A análise das variáveis quantitativas foi realizada pela comparação entre médias (com checagem prévia da normalidade das distribuições), utilizando-se o teste t de Student e o teste de Mann-Whitney, e para análise das variáveis categóricas foi utilizado o teste do qui-quadrado e qui-quadrado corrigido por Yates (tabelas 2x2). O nível de significância foi de P < 0,05.


RESULTADOS

As variáveis de análise antropométricas não apresentaram diferença estatística significativa.

O tempo de CEC teve média de 45,48 minutos (min) no grupo controle e no grupo ACEC de 50,24 min (P=0,3447).

O grupo I apresentou volume de sangramento médio de 633,57 mililitros (ml) nas primeiras 24 horas de pós-operatório, e o grupo II média de 308,81 ml, observando-se diferença estatisticamente significativa (P=0,0003) - Figura 1. O volume médio de hemotransfusão (Figura 2) nas primeiras 24 horas nos grupos I e II foi, respectivamente, de 942,86 ml e de 214,29 ml, havendo diferença significativa (P<0,0001), como se observa na Tabelas 1 a 4.


Fig.1 - Volume de sangramento - Grupo I - controle; Grupo II - ácido épsilon aminocapróico


Fig. 2 - Volume de hemotransfusão - Grupo I - controle; Grupo II - ácido épsilon aminocapróico










Já com relação à necessidade de hemotransfusão, constatou-se que todos os pacientes do grupo I necessitaram de infusão de hemoderivados, e somente oito pacientes do grupo II necessitaram da mesma (P<0,0001). Comparando-se o tipo de cirurgia realizada, se plástica ou troca valvar, não se observou diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos estudados (Tabelas 3 e 4).


DISCUSSÃO

Os riscos associados à transfusão sanguínea e seus componentes incentivaram a pesquisa de agentes farmacológicos capazes de reduzir as perdas sanguíneas em consequência do uso da CEC [6]. A frequência do sangramento excessivo é variável. Foi considerado, em 13% a 16% dos pacientes observados, um sangramento anormal, traduzido pela necessidade de transfusões de 10 unidades de concentrados de hemácias, ou mais, no período peri-operatório [14].

Dentre os pacientes analisados nesta investigação, não foi observado sangramento superior a 1200 ml, sendo a média de sangramento de 308,81 ± 210,1 ml, demonstrando que a utilização do ácido épsilon aminocapróico, nessa amostra, em cirurgias cardíacas mitrais com utilização da CEC reduziu o sangramento e a utilização de hemoderivados. Deve-se ressaltar a dificuldade em se quantificar o sangramento transoperatório. Justificam-se, e em alguns casos e de acordo com os critérios de hemotransfusão citados no método, volumes de transfusão sanguínea maior que volumes de sangramento pós-operatórios nas primeiras 24 horas.

Karski et al. [15] relataram incidência de 18% dos pacientes submetidos a cirurgias utilizando-se CEC, com grande necessidade de sangue e seus derivados, aumentando o risco de infecções e reações transfusionais.

DelRossi et al. [16] concluíram que o tratamento profilático com ácido épsilon aminocapróico em cirurgias cardíacas que necessitaram de CEC pode reduzir o sangramento de uma maneira segura e tolerável.

Montesano et al. [17] analisaram os efeitos de doses baixas do ácido épsilon aminocapróico em pacientes submetidos à revascularização do miocárdio. Utilizaram 5g de ácido épsilon aminocapróico imediatamente antes do início da perfusão, em dose única. Observaram um sangramento menor e menor necessidade de hemotransfusão, estatisticamente significativo.

Breda et al. [18] concluíram que o uso tópico de antifibrinolíticos na cavidade pericárdica do ácido épsilon-aminocapróico apresentou efeito favorável na redução do sangramento nas primeiras 24 horas de pós-operatório e na necessidade de transfusão sanguínea após revascularização cirúrgica do miocárdio quando realizados.

No presente trabalho, os dois grupos de pacientes eram semelhantes em todos os parâmetros avaliados, com exceção do volume de sangramento e transfusão de hemoderivados. Pode-se verificar que o grupo I apresentou volume médio de sangramento de 633,5 ± 305,7 ml e o grupo II, 308,8 ± 210,1 ml, com nível de significância estatisticamente significativo (P=0,0003). Houve, também, diminuição no uso de hemoderivados, pois, no grupo I (controle) foram infundidos uma média de 942,8 ± 345,8 ml, sendo que no grupo II (ácido épsilon aminocapróico), a média foi de 214,3 ± 330,6 ml, com nível de significância menor que 0,0001. Com a diminuição do uso de hemoderivados podem-se diminuir os riscos de infecções e reações transfusionais, sustentando ainda mais a necessidade do uso do AEAC.

A eficácia do ácido épsilon aminocapróico, dentre as opções atuais para utilização dos antifibrinolíticos, com relação à diminuição do sangramento pós-operatório e à necessidade de hemotransfusões é questionada e conflitante em muitos estudos da literatura [19-21]. Apesar da utilização dos antifibrinolíticos não constar em consensos e diretrizes determinando a sua utilização cotidiana e obrigatória em cirurgias valvares, os resultados do presente trabalho, na dose utilizada, comprovam que o ácido épsilon aminocapróico possui real importância em relação ao sangramento pós-operatório e à utilização de hemoderivados em cirurgias valvares mitrais. Deve-se enfatizar, que na dose apresentada, em pacientes com função renal e hepáticas normais, há ausência de fenômenos trombóticos e reações de hipersensibilidade [22].


CONCLUSÃO

A presente investigação permite concluir que o ácido épsilon aminocapróico, na dose preconizada, foi capaz de reduzir o volume de sangramento e a necessidade de hemoderivados no pós-operatório imediato de pacientes submetidos a cirurgias valvares mitrais.


REFERÊNCIAS

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Article receive on sexta-feira, 11 de junho de 2010

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