Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

0

Views

ARTIGO ORIGINAL

Erro médico: aspectos jurídicos

Nereu Cesar de MoraesI

DOI: 10.1590/S0102-76381996000200002

O erro médico pode ser analisado sob aspectos vários, não constituindo um conceito estanque; pelo contrário, permeia-se por áreas diversas: ora é encarado à luz da Ética, ora sob o prisma de sua repercussão na Mídia; dá-se ênfase, por vezes, aos efeitos deletérios do erro na instituição médica, e assim por diante. Mas é na esfera do Direito que o erro médico se espraia com largueza, interessando a várias esferas da Ciência Jurídica. Essa interpenetração das duas disciplinas - a Medicina, de um lado, o Direito, de outro - não deve causar espécie, pois não há ciência que se baste a si: essa é a visão cartesiana dos conhecimentos humanos: "as ciências estão todas entrelaçadas entre si, de tal forma que é mais fácil aprendê-las todas de uma vez, do que separar uma das outras". É manifesto que o desenvolvimento extraordinário das ciências não mais permite a um só estudioso abraçá-las todas elas.

Cuidemos, então, de analisar os aspectos jurídicos do erro médico.

O erro faz parte da natureza humana e é certo que, num ou noutro aspecto, acompanha o homem desde os seus primeiros passos.

A verdade tem, para si, um caminho retilíneo, de mão única; é o que se extrai, logo num primeiro lance, da frase transcendente utilizada por Cristo: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". Já o erro nada tem de retilíneo: suas veredas são incontáveis, repassadas de encruzilhadas e derivações; pior: o erro é fecundante e prolífico, pois é muito raro que um erro não chame outros, para produzir seus malefícios.

Santo Agostinho, um dos cérebros mais privilegiados da Patrística, fixou essa tendência da natureza humana em três palavras lapidares: "Si fallor, sum" (Se erro, sou).

Não há, então, porque anatematizar o erro médico: é o erro numa profissão, como os há em todas as profissões.


Histórico

Na Antiguidade remota, o exercício da Medicina (se é que de Medicina se cuidava) era um conglomerado de mitos. Veja-se, por exemplo, o caso de Asclepius, conhecido pelo nome latino de Esculápio, que curava... por sonhos, em seu templo de Epidauro, na velha Grécia. Nessas eras, não havia porque ter em conta o erro, de tal monta era o seu acervo; só se levava em consideração as curas, que, de tão raras, se inscreviam nas colunatas do templo.

Passada essa fase mítica, os homens começaram a ter em consideração o erro médico e essa preocupação se perde na noite dos tempos. Surgem, então, os primeiros preceitos procurando reprimir os desvios de conduta no exercício da Medicina.

Dezenove séculos antes de Cristo, Hamurabi, fundador do império babilónico, inscreveu em seu famoso código várias normas, prevendo penas para os médicos incompetentes ou desastrados.

Com o curso do tempo, a disciplina legal da profissão médica foi ganhando vulto, atingindo sua maioridade com Hipócrates de Cós, que, com os discípulos, escreveu cento e vinte obras, enfatizando, a cada passo, o compromisso que o médico deve assumir de ser fiel às melhores tradições de sua profissão; tais normais passaram a enriquecer o juramento hipocrático, que realça essa fidelidade, em quase todas as graduações médicas.

Na Roma Antiga, as leis sobre o erro médico eram muito severas; tão severas que foram afastando da profissão os mais capazes, os mais aptos, com receio das punições. Esse êxodo chegou a extremos e, a partir de certa época, somente os escravos curavam. Os nobres mais ricos do patriciado romano passaram a "importar" médicos de Alexandria e da Grécia, da mesma forma que "importavam" perfumistas e criados de quarto. A Medicina perdeu sua dignidade; daí ao ridículo e à excentricidade foi um passo; na conhecida Escola de Salerno fabricavam-se pomadas para todas as finalidades; a mais célebre delas era o "ungüento da simpatia"...

As leis repressivas foram, paulatinamente, caindo em desuso e passou-se à prática indiscriminada e descontrolada da Medicina; era a impunidade, como adubo de primeira ordem para o erro médico.


Erro versus Ignorância

Uma coisa é o erro, outra, a ignorância. Para os efeitos da análise do desvio de conduta médica, o Direito não leva em consideração se o mal foi praticado por erro ou por ignorância. Tanto incide em responsabilidade o médico que, no mau exercício da profissão, causa dano ao paciente por erro, quanto o profissional que compromete a vida ou a saúde do paciente por ignorância.

O que importa, e importa decisivamente, nesse terreno, é o que se denomina má prática. A expressão foi cunhada pelos americanos; "malpractice", e se aplica a todas as profissões. É a má prática que pode levar à responsabilidade legal do médico. Essa responsabilidade pode assumir três aspectos: penal, civil ou administrativo.

O erro é a falsa concepção acerca de um fato ou de uma coisa; é uma idéia contrária à realidade. A ignorância, por seu turno, é a falta de conhecimento de alguma coisa ou de um fato.

No erro, forma-se um juízo falso sobre algum aspecto da realidade; na ignorância não se tem juízo nenhum, falso ou verdadeiro, sobre determinado objeto. Lá, no erro, um falso conhecimento; já na ignorância, a falta de conhecimento. Para o Direito, a distinção se exaure no campo da teoria, pois, na prática, as conseqüências do erro e da ignorância são tratadas de igual maneira.

A responsabilidade pela má prática nasce da culpa, que tanto pode envolver o erro como a ignorância.


Feições da Culpa

O conceito de culpa é dos mais controvertidos no campo jurídico; a dificuldade advém de dois aspectos principais: a culpa tem espectro muito amplo, alcançando hipóteses insuspeitas, e oferece gradação, desde a culpa levíssima até a gravíssima. Essa abrangência praticamente impede uma conceituação unívoca da culpa: oferecido um conceito, sempre surgirão exemplos e perspectivas que fogem ao seu âmbito.

Como a linguagem jurídica deve ser técnica e precisa (mormente no campo do Direito Penal), os legisladores, em geral, abstiveram-se de definir a culpa. Preferiram mencionar as três formas de conduta que caracterizam a culpa: a imprudência, a negligência e a imperícia. Essas três feições da culpa são clássicas, desde o Direito Romano dos Césares.

Se o médico, em sua atividade profissional, determina a morte do paciente ou o comprometimento de sua integridade física ou de sua saúde, por conduta culposa, deve responder pelo seu ato.

Como se caracteriza essa conduta culposa? De três maneiras: por imprudência, por negligência ou por imperícia.

A imprudência consiste na precipitação, no agir sem cautela, no desprezo dos cuidados que devemos ter em nossos atos. O cirurgião que opera em condições adversas de assepsia, conhecendo essa deficiência, é um imprudente; o clínico que prescreve um medicamento de graves efeitos colaterais, sem os levar em consideração, age com imprudência.

A negligência é a omissão daquilo que razoavelmente se faz; é a falta de observância de deveres exigidos pelas circunstâncias. O ortopedista que, por pressa ou desídia, avalia mal uma radiografia, e não detecta uma fratura que pode ter conseqüências danosas no ato cirúrgico, age com negligência. É um atuar negativo, um não-fazer.

A imperícia é a falta de aptidão, teórica ou técnica, no desempenho da profissão. Tanto é imperito um cirurgião que, inadvertidamente, secciona, sem necessidade, uma determinada estrutura, quanto um clínico que, sem as cautelas devidas, prescreve um cumarínico para seu paciente.

Essas feições da culpa não têm autonomia precisa: vez por outra se interpenetram e se entrelaçam: é comum defrontarmo-nos com imprudência mesclada de negligência, de imperícia agravada pela imprudência, e assim por diante.

O parâmetro para a conduta culposa é a previsibilidade. Se o médico não prevê o que deveria prever e causa dano age culposamente, seja por imprudência, seja por negligência, seja por imperícia.

A análise dessa previsibilidade tem caráter objetivo, não subjetivo: toma-se como paradigma o nivel médio da capacitação profissional, nas coordenadas de tempo e de espaço. Não é de se exigir de um médico de um desses grotões do Brasil que tenha a mesma acuidade e capacitação de um Professor da Harvard Medical School.


Relação Médico-Paciente

Qual a natureza da relação entre o médico e o paciente em geral? Tem sido e é acesa a polêmica sobre esse tema. Uns juristas entrevem apenas urna relação contratual, isto é, entre o médico e o paciente celebra-se um contrato, de prestação de serviço profissional; outros admitem duas feições: a contratual e a extracontratual (delitual). Quando um paciente procura os cuidados de um profissional da Medicina, desponta claro o caráter contratual da relação que se estabelece. Quando, no entanto, o médico atende uma emergência, quando sequer conhece o paciente ou quando o paciente, por mais de um motivo, não pode expressar seu consentimento, não há como falar-se em vínculo contratual; contrato não há.

Essas feições do atendimento médico em nada interferem com os aspectos da responsabilidade legal. Se o médico, em qualquer dessas situações, age com imprudência, com negligência ou com imperícia, comprometendo a vida ou a saúde de seu paciente, envolve-se na má prática: é o ato ilícito, em sua forma culposa.

Observe-se, desde logo, que a lei não oferece subsídios precisos seja para a caracterização da má prática, seja para a estimativa dôs danos; deixa tais problemas para a discrição do juiz; discrição que não se confunde com arbítrio, que o direito não admite, em nenhuma perspectiva. É a prudência do denominado bônus pater familias, do bom pai de família, do cidadão perfeito, que bem conhece as virtudes e as fraquezas humanas e sabe como sopesá-las.


Erro Médico e Responsabilidade Legal

O erro, seja qual for, consiste num agir ou num não-agir. Tanto erra o que faz o que não deve quanto o que não faz o que deve.

Os latinos, mestres da síntese, traduziam em três palavras a conduta que deve ser adotada para evitar o erro: Age quod agis: faze o deves, age como deves agir.

Se o agir ou o não-agir estão envoltos na imprudência, na negligência ou na imperícia, caracterizada está a má prática; se esse desvio de conduta causa dano ao paciente, o médico deve responder pelo seu ato.

O erro médico é, então, um agir ou um não-agir contrariando uma conduta recomendada pela Ciência Médica.

Violando o dever de conduta recomendado pela Ciência Médica, com um agir ou um não-agir, por imprudência, negligência ou imperícia, e causando dano ao paciente, em suas várias formas, o médico deve ser questionado pela má prática: é o ato ilícito, que pode determinar sua responsabilidade legal.

Essa responsabilidade alcança três esferas no trato jurídico: a esfera penal, a esfera civil e a esfera administrativa. Esses aspectos se referem à responsabilidade legal, não à responsabilidade ética; esta é reservada à Religião, à Deontologia e aos órgãos correcionais; não se conclua, daí, que o comportamento ético não deva ser levado em consideração na aferição da responsabilidade legal; pelo contrário, deve ser considerado, mas apenas como subsídio e elemento informativo da responsabilidade legal. A Moral e o Direito têm fundamento ético comum; mas a Moral encara os atos humanos, predominantemente,em seu momento interno, volitivo, ao passo que Direito cuida deles quando se exteriorizam, quando assumem realidade física.

A responsabilidade legal do médico, pela má prática, espraia-se por três ramos do Direito: Direito Penal, Direito Civil e Direito Administrativo.

A responsabilidade é penal quando o dano, pela gravidade, causa turbação da ordem social. É a comoção da comunidade, que ultrapassa o âmbito do paciente e de sua família. A sanção é uma pena, que pode ser corporal ou pecuniária, e só recai sobre o autor da má prática.

Na responsabilidade civil, o dano tem repercussões mais restritas: alcança o paciente e sua família, sem outros extravasamentos. A sanção tem natureza exclusivamente patrimonial e alcança o profissional responsável e seus sucessores.

Na responsabilidade administrativa, o dano repercute na reputação da profissão médica e da instituição que a representa. Os aspectos correcionais ou corretivos estão a cargo dos Conselhos de Medicina, federal e estaduais; os aspectos funcionais, derivados da má conduta do servidor público, competem à Administração Pública, em seus vários níveis (União, Estados e Municípios). As sanções são correcionais ou administrativas, numa escala que vai da simples censura ou advertência reservada até a demissão a bem do serviço público e à proibição do exercício da profissão.


Apuração da Responsabilidade Legal

Na apuração do erro médico e de suas conseqüências, devemos levar em consideração quatro ordens de conceitos e de aspectos.

Em primeiro lugar, devemos levar em conta o que se denomina de materialidade e autoria. A materialidade é o ato da atividade profissional em si, o evento, o fato gerador do dano à vida ou à saúde do paciente; a autoria, o nome o diz, é a efetiva participação do médico no ato causador do dano ou prejuízo.

A segunda consideração diz com o dano, o comprometimento da vida, da saúde ou da integridade fisíca do paciente. Se a má prática não causar prejuízo dessa natureza, não há falar-se em responsabilidade legal do médico.

Segue-se a análise da causalidade: houve relação de causa e efeito entre a má prática e o resultado danoso? Não teria havido a intercorrência de concausa relevante, de caso fortuito ou de força maior, a determinar, por si só, o dano? Veja-se, por exemplo, o caso de um erro médico que pode causar, com o tempo, a morte ou a incapacidade total do paciente; logo após o ato profissional, sobrevêm um acidente que causa a morte do paciente: não se estabeleceu o nexo de causalidade entre a atividade profissional do médico e o evento letal; não há falar-se em responsabilidade legal, pela inexistência da relação de causalidade.

Esses elementos todos podem estar presentes, mas ainda resta um aspecto para a análise da responsabilidade legal: é o que se denomina antijuricidade, pois há causas que afastam a ilegitimidade do proceder, o ato ganha legitimidade. Quatro são as causas que afastam a antijuricidade, que tornam legítimo o ato: o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito. Observe-se que não se usou, nesse tema, de terminologia técnica, que se relaciona com aspectos complexos, referentes à responsabilidade, à imputabilidade e à antijuricidade e que bem se situam na Ciência Penal.


Responsabilidade Civil

Dentro da responsabilidade legal, vamos dar ênfase à responsabilidade civil, a que diz, mais de perto, com o paciente ou com sua família.

A cupidez humana é fonte inesgotável de abusos no propósito de buscar reparação civil pelo erro médico. O raciocínio da vítima é elementar e primário: se o médico que me atendeu se envolveu em má prática, vamos responsabilizá-lo e fazer fortuna fácil. É assim que excogitam certos pacientes ou suas famílias. Multiplicam-se, então, as ações de reparação civil, decorrentes do erro médico.

Está na lei que o médico está obrigado a indenizar os danos decorrentes de sua conduta culposa.

Que danos são esses? São as perdas e danos, a que se refere o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1.059:

"As perdas e danos devidos ao credor (no caso, o paciente ou sua família) abrangem, além do que efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar".


A perda efetiva ("...o que efetivamente perdeu") leva o nome de danos emergentes; o "...que razoavelmente deixou de lucrar" leva a denominação de lucros cessantes. O dano emergente é a perda efetivamente sofrida; o lucro cessante é o ganho frustrado por ato alheio ou fato de outrem.

Os danos emergentes e os lucros cessantes oferecem largos horizontes, mas uma diretriz deve ser, desde logo, .ressaltada: as perdas e danos devem ser aferidos com discrição e prudência. Os dois advérbios, utilizados pelo legislador ("... efetivamente perdeu" e "razoavelmente deixou de lucrar") demonstram sua cautela.

Os danos emergentes constituem os prejuízos de qualquer natureza que o paciente e ou sua família tiveram de enfrentar, em razão da má prática médica; são as despesas de transporte, de hospitalização, de especialistas, de prestadores de serviço e assim por diante. Mas, não se limitam aos aspectos materiais de tais despesas, pois, ao lado do dano material, há o que se denomina de danos morais: são danos que não têm natureza patrimonial e representam o que os latinos denominavam de praetium doloris (o preço da dor): é o luto, o acicate da saudade, a perda da amenidade da casa e da tranqüilidade do lar e muitos outros aspectos. O dano moral é o que advém dos direitos da personalidade da vítima e das relações de família.

Os lucros cessantes representam o que a vítima deixou de lucrar, em razão do erro médico: a diminuição da capacidade de trabalho, o corte abrupto da profissão, a atividade negocial interrompida a meio, e outras circunstâncias mais. Na estimativa dos lucros cessantes, desempenha papel preponderante a perspectiva de sobrevida do paciente; os Tribunais brasileiros têm levado em conta, costumeiramente, a idade de 65 anos, para esse fim, mas já se observa uma tendência para elevar esse nível.

Note-se, também, que, no Brasil, houve muita relutância do Poder Judiciário em reconhecer o direito à indenização por dano moral, mas a jurisprudência evolveu, decisivamente, pela resposta positiva, mandando indenizar, também, danos dessa natureza.


Aspectos Particulares do Erro Médico

Em tema de erro médico, avultam alguns aspectos particulares que devem ser postos em destaque.

O primeiro refere-se às denominadas "prestações benévolas": é o caso do médico que, gratuitamente, atende um amigo, o pai de um colega e assim por diante; se incorrer na má prática e causar dano, deve responder da mesma forma que responderia se se cuidasse de assistência médica paga; o direito à vida e à incolumidade pessoal nada tem a ver com a prestação de serviço gratuita ou onerosa.

Um segundo aspecto diz com as emergências, com realce para os atendimentos urgentes de rua. Nesses casos, os riscos avultam desmesuradamente; e, o que é compreensível, os médicos relutam, e muito, em dar atendimento a tais situações.

Essa relutância criou sérios problemas nos Estados Unidos, que se viram obrigados a baixar uma lei, isentando o médico de qualquer responsabilidade, nas emergências de rua: foi a denominada "lei do samaritano".

Um outro aspecto do problema está estreitamente vinculado à natureza da atividade profissional. O médico deve tratar o doente e empregar o melhor de sua capacidade para salvar-lhe a vida, devolver-lhe a saúde ou manter sua integridade física. Essa atividade envolve uma obrigação de meio, não de resultado. O médico não pode prometer a cura ou a subsistência da vida do paciente, o êxito enfim. Há, no entanto, uma especialidade médica em que a atividade é de resultado: é a cirurgia estética. Essa circunstância leva o cirurgião plástico a riscos maiores que os das demais especialidades. Daí, as sucessivas ações de indenização movidas contra cirurgiões dessa área. É uma especialidade que, na análise dos prognósticos, reclama extrema cautela do cirurgião.

Outro aspecto é o da co-responsabilidade civil: refere-se à obrigação de indenizar a cargo de hospitais, de empresas de medicina de grupo e de outras entidades assemelhadas; obrigação que se chama "obrigação solidária" com a do médico envolvido no desvio de conduta médica. No caso de má prática, por médico subordinado, a qualquer título, a essas entidades, podem elas virem a ser também responsabilizadas; essa co-responsabilidade não decorre da má prática em si: decorre da culpa da entidade envolvida, seja pela má escolha do profissional ( culpa in eligendo), seja pela omissão do dever de fiscalizar sua atuação (culpa in vigilando).

Por fim, não há como esquecer de dois temas geralmente envolvidos com o erro médico: a eutanásia e o segredo profissional, sempre lembrados nos trabalhos relativos ao desvio de conduta da profissão médica.


Medicina: Ciência de Alto Risco?

No curso dessas considerações, muito se falou da responsabilidade legal do médico, da culpa e de seus desdobramentos, da reparação civil, e dos danos advindos da má prática médica; tais considerações poderiam transmitir um sentimento de pessimismo e de desalento, projetando a Medicina como ciência e arte de altíssimo risco. Pois aqui reside o grande paradoxo, já que a profissão médica venceu todos os percalços e vicissitudes e, a partir dos tempos modernos, conquistou e mantém uma aura de prestígio e de confiança que adorna seu exercício.

Duas razões principais para esse primado.

A primeira diz com a Estatística. O erro médico, em sua conceituação técnica, constitui uma exceção. A celeuma e a comoção, que o erro médico causa, decorrem, não de sua grandeza numérica, mas dos valores envolvidos no evento danoso, que são dos mais caros do tesouro humano: a vida e a saúde.

Com o avanço da ciência e da técnica, o erro médico vai rareando a cada estágio da História e não deixa de concorrer para o aprimoramento da Medicina. A página negra de Caruaru será, certamente, um marco divisório na prática da hemodiálise em nossa terra; a vacinação em massa contra a meningite, na região de Campinas, felizmente sem conseqüências letais, desponta como um alerta severo, em futuras campanhas dessa natureza.

A outra causa do prestígio da Medicina, não obstante os erros médicos, diz com a natureza de seu sacerdócio. Muito mais que um simples prestador de serviços, o médico é, ao mesmo tempo, um conselheiro, um protetor e um guarda do enfermo que lhe solicita os cuidados. Nessa múltipla missão pode errar, porque o erro é, praticamente, o substrato da natureza humana; mas, se orientar a bússola de sua profissão, assim no diagnóstico como na conduta, para uma consciência profissional esclarecida e responsável, não tem por que temer. É essa consciência, apregoada por Hipócrates, há quase quarenta séculos, que empresta à Medicina o sopro de magia e de mistério, que a projeta ao nosso respeito e à nossa admiração. Em duas palavras: a virtude e a verdade é que emprestam grandeza à profissão médica e o erro em nada turba ou perturba essa grandeza.
CCBY All scientific articles published at rbccv.org.br are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY