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ARTIGO ORIGINAL

Descelularização como método anticalcificante em próteses valvares de pericárdio bovino sem suporte: estudo em ovinos

Claudinei COLLATUSSO; João Gabriel Roderjan; Eduardo Discher Vieira; Nelson Itiro Myague; Lúcia de Noronha; Francisco Diniz Affonso da Costa

DOI: 10.5935/1678-9741.20110017

INTRODUÇÃO

Próteses valvares biológicas têm características bastante atrativas, tais como boa função hemodinâmica, baixa incidência de complicações tromboembólicas, mesmo na ausência de terapia anticoagulante, e estão associadas a boa recuperação funcional e da qualidade de vida. Entretanto, sua durabilidade é limitada, especialmente em crianças e adultos jovens [1-4].

O glutaraldeido (GDA) é usado para a fixação de tecidos biológicos heterólogos, pois reduz sua antigenicidade, aumenta a resistência tecidual, além de ser efetivo como agente esterilizante [5]. Entretanto, a degeneração tecidual progressiva, especialmente em decorrência de calcificação distrófica, ainda representa a maior limitação para o uso clínico das próteses valvares biológicas. Os mecanismos responsáveis pela calcificação são multifatoriais [6-9], entretanto é sabido que uma das principais causas se deve à atração eletrostática entre o cálcio circulante e os fosfolipídeos presentes nas membranas e debris celulares de tecidos fixados [10,11]. Além disso, a liberação de aldeídos residuais é citotóxica, causando reação inflamatória e servindo como um sítio inicial à deposição de cálcio [11].

Diversos tratamentos foram testados com a finalidade de eliminar ou retardar a calcificação, porém nenhum método é completamente eficaz [12-16]. A descelularização tem sido proposta como uma alternativa no processamento de tecidos biológicos de próteses cardiovasculares. Em teoria, a retirada dos elementos celulares não somente diminui a antigenicidade tecidual, como, potencialmente, inibe ou retarda a calcificação, por eliminar os focos iniciais de depósito de cálcio nas membranas e debris celulares [17-20].

A descelularização pode ser feita por processos físicos, químicos ou enzimáticos. Dentre as soluções descelularizantes mais comumente empregadas, estão as baseadas em dodecil sulfato de sódio (SDS), deoxicolato de sódio, Triton X100, tripsina e DNAses [18].

Nosso grupo de pesquisa, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), desenvolveu e patenteou método de descelularização de homoenxertos valvares, baseada numa solução de SDS. Os resultados experimentais e clínicos demonstraram que os enxertos se tornaram mais biocompatíveis e apresentaram maior resistência à calcificação [22,23]. Utilizando a mesma tecnologia, pudemos observar que pericárdios bovinos descelularizados e posteriormente fixados em GDA não calcificaram quando implantados no tecido celular subcutâneo (TCSC) de ratos, por períodos de até 90 dias (dados não publicados).

Esse trabalho representa a continuidade dessa linha de pesquisa e pretende avaliar se a descelularização com SDS de tubos valvulados de pericárdio bovino fixados em GDA é eficaz como método anticalcificante, em modelo circulatório de animal de maior porte.

 

MÉTODOS

Foram utilizados 16 carneiros jovens da raça Soulfok, com idade de 14±2 semanas (mín = 12 e máx = 16) e peso de 24 ± 3 kg (mín = 20 e máx = 30), divididos em dois grupos de oito animais cada. Nos animais do grupo GDA (Grupo controle), foram implantados tubos valvulados de pericárdio bovino fixados em GDA 0,5% e, nos do grupo DESCEL (Grupo Descelularizado), tubos valvulados de pericárdio bovino descelularizados com SDS 0,1% e posteriormente fixados em GDA 0,5%. Em ambos os grupos, os tubos valvulados foram implantados de forma ortotópica, na via de saída do ventrículo direito, substituindo a valva pulmonar e a porção inicial do tronco da artéria pulmonar. Os animais foram acompanhados por um período de 180 dias, quando foi realizado o explante dos enxertos. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Animais, sob protocolo Nº 263, com parecer Nº 173/07 CEUA PUCPR, em 03/10/07.

Preparo dos enxertos

Os pericárdios bovinos foram coletados em abatedouros da região metropolitana de Curitiba e transportados até o Núcleo de Enxertos Cardiovasculares (NEC) do Laboratório de Engenharia de Tecidos e Transplante Celular da PUCPR, em solução salina fisiológica a 4ºC, onde foi feita a dissecção de toda a gordura pericárdica sob fluxo laminar. Em seguida, foram imersos em meio nutriente Roswell Park Memorial Institute (RPMI 1640, Sigma®), contendo antibióticos (cefoxitina 240 µg/ml, lincomicina 120 µg/ml, polimixina B 100 µg/ml e vancomicina 50 µg/ml) por 24 horas.

Após a descontaminação, os pericárdios do grupo GDA foram fixados em solução de GDA 0,5% por 72 horas, seguindo as rotinas utilizadas pela Cardioprótese no preparo de tecidos para confecção de próteses cardíacas. Foram construídos tubos de 21 mm de diâmetro, contendo na sua porção proximal uma valva tricúspide. Todos os condutos valvulados foram armazenados em solução tamponada de metil paraben até o momento do implante. Já no grupo DESCEL, os pericárdios foram descelularizados com SDS 0,1%, segundo tecnologia desenvolvida e patenteada na PUCPR (pedido de patente brasileira: PI 800603-2). Em seguida, foram fixados em GDA 0,5%, sendo o restante do processo semelhante ao do Grupo GDA. Um segmento do tecido foi encaminhado para análise histológica com hematoxilina-eosina para comprovação da efetividade da descelularização.

Técnica operatória

A indução anestésica foi feita com propofol (Diprivan®, Astra Zeneca) na dose de 4 mg/kg de peso e a manutenção com dosagem de 0,6 mg/kg/min por via endovenosa.

As operações foram realizadas por toracotomia lateral esquerda no 4º espaço intercostal. Após a abertura longitudinal do pericárdio, foi feita heparinização sistêmica na dose de 200 U/kg de peso e a CEC foi estabelecida por canulação da aorta torácica descendente e do átrio direito. Os procedimentos foram feitos com circulação extracorpórea (CEC) em normotermia, utilizando oxigenadores de membrana pediátrico (Biomédica ECO-1, Braile Biomédica), fluxo arterial de 2 a 2,4 l/min, com o coração batendo, sem pinçamento da aorta.

Após secção transversa da artéria pulmonar, as cúspides pulmonares nativas foram ressecadas e a via de saída do ventrículo direito reconstruída com implante de conduto valvulado de pericárdio bovino, com suturas contínuas de polipropileno 4.0 em suas porções proximal e distal. A profilaxia antibiótica foi feita com ceftiofur 1 mg/kg e gentamicina 4 mg/kg de 12/12h por 5 dias e a analgesia pós-operatória com flumexil meglumine 1,5 mg/kg. Os animais foram mantidos na Fazenda Gralha Azul e, antes do sacrifico, foram submetidos a estudo ecocardiográfico transtorácico (SONOS 5500, Philips), para avaliar a mobilidade valvar e presença de calcificação, além da medida das velocidades de fluxo por Doppler contínuo e pulsado, com os respectivos cálculos dos gradientes transvalvares.

Explante, análise macroscópica e avaliação histológica

Os animais foram sacrificados aos 180 dias de evolução, e os tubos explantados por nova toracotomia lateral. Durante o procedimento, foi observada a intensidade das aderências em torno dos enxertos.

Os condutos explantados foram avaliados macroscopicamente e a documentação fotográfica feita com máquina digital Sony Cyber-Shot® 5.1. Foram especificamente observadas a consistência da parede dos condutos, a mobilidade das cúspides valvares, a intensidade e a distribuição de calcificação, além da presença de trombos ou vegetações. Os condutos foram também avaliados radiologicamente (Mammomat C3, Siemens), com incidências axial e sagital para a observação de pontos de calcificação, sua localização e extensão da área calcificada.

Os condutos foram seccionados longitudinalmente, de forma a obter três segmentos contendo uma cúspide valvar e seu respectivo segmento de parede do conduto. O segmento mais calcificado foi desidratado à 60ºC por 24h, triturado com lâmina de bisturi e hidrolisado com HCl 6N por 72h, sendo encaminhado ao LACTEC (Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento - PR) para a quantificação de cálcio por espectrometria de absorção atômica com atomização em chama (Perkin Elmer, 4100). A quantidade de cálcio foi expressa em ìg/mg de peso seco de tecido analisado. O segundo segmento foi fixado em formalina 10%, emblocado em parafina, sendo realizados cortes de 4 µm de espessura. As lâminas foram coradas com hematoxilina-eosina para avaliar a presença de infiltrado inflamatório, alizarina red pH 4,2 e 7,0 para análise da calcificação com cristais de fosfato de cálcio e oxalato de cálcio, respectivamente, e pentacrômico de RusselMovat's, para avaliação da arquitetura da matriz extracelular. O terceiro segmento foi armazenado para a eventual necessidade de análises subsequentes.

Analise estatística

Os resultados obtidos foram expressos por médias, medianas, valores mínimos, máximos e desvios padrão. Para a comparação dos grupos em relação à variável quantitativa, valor de cálcio foi considerado o teste nãoparamétrico de Mann-Whitney. Valores de p<0,05 indicaram significância estatística. Os dados foram organizados em planilha Excel e analisados com o programa computacional Statistica v.8.0.

 

RESULTADOS

Evolução clínica

Não houve mortalidade imediata. Quatro animais (dois em cada grupo) faleceram na evolução tardia. Dois animais em decorrência de endocardite bacteriana no tubo valvulado, ambos já no primeiro mês de evolução. Um animal morreu por hemorragia no 2º dia pós-operatório e o outro, secundário a infecção abdominal por rotura do abomaso na 2ª semana. Esses animais foram submetidos a necropsia e excluídos do estudo. Os demais apresentaram evolução clínica satisfatória, com ganho pondero-estatural adequado, sendo o peso final de 43 ± 5,6 kg (mín = 38, máx =49).

Análise ecocardiográfica

Os resultados dos ecocardiogramas estão demonstrados na Tabela 1. Em três animais de cada grupo, não foi possível adequada avaliação ecocardiográfica em decorrência de falta de transdutor apropriado para o tamanho dos animais.

 

 

Análise macroscópica

Houve importante diferença nas aderências pósoperatórias entre os grupos. Em todos os animais do grupo GDA, as aderências foram intensas, com marcada reação inflamatória ao redor dos enxertos, havendo dificuldades para a sua dissecção. Já no grupo DESCEL, as aderências foram frouxas, havendo um plano de dissecção mais evidente.

Pela palpação, os enxertos do grupo GDA estavam endurecidos, especialmente na região das cúspides, enquanto os do DECEL apresentavam consistência mole, sendo ambos recobertos por pannus. Após secção longitudinal dos enxertos, observou-se que no grupo GDA as cúspides estavam bastante calcificadas e imóveis, enquanto que, nas paredes dos condutos, a calcificação era menos acentuada. Já no grupo DESCEL, as cúspides eram móveis, sem calcificações grosseiras, e a parede dos condutos também se mostrava bem preservada (Figura 1). Não foram observados trombos ou vegetações em nenhum caso.

 

 

 

Esses achados foram confirmados pela análise radiográfica, sendo observada calcificação intensa das cúspides do grupo GDA, enquanto no grupo DESCEL havia apenas pontos focais de calcificação distribuídos próximos às linhas de sutura (Figura 1).

Análise histológica

Coloração de HE

No grupo GDA, pode-se observar que tanto nas cúspides como nos condutos a matriz extracelular se encontrava desorganizada, com áreas de necrose e rotura de fibras colágenas. Havia infiltrado inflamatório crônico constituído de leucócitos monomorfonucleares, células fagocitárias gigantes multinucleadas, linfócitos, macrófagos e histiócitos, sugerindo reação granulomatosa de corpo estranho. Esse infiltrado foi mais evidente na sua porção proximal, sendo mais intenso na sua face adventicial, onde havia presença de neovascularização. Em algumas regiões do conduto, pode-se observar a presença de condrócitos e fibroblastos com formação de áreas de metaplasia osteoide em fase inicial. Nas cúspides, o infiltrado inflamatório foi mais pronunciado nas suas porções basal e média, visualizando-se extensas áreas de calcificação (Figura 2A). Tanto nas cúspides como nos condutos havia a formação de camada neointimal, constituída por tecido conjuntivo frouxo de provável origem hematológica, contendo células inflamatórias e pontos focais de endotélio.

 

 


 

No grupo DESCEL, havia o mesmo tipo de infiltrado inflamatório, entretanto, a matriz extracelular estava preservada, com menor fragmentação das fibras colágenas. Ao contrário do grupo controle, as cúspides e os condutos apresentaram apenas pontos focais de calcificação localizados próximos das linhas de sutura. A formação de tecido neointimal desse grupo foi mais intensa do que no grupo controle (Figura 2B).

Coloração Pentacrômico de Russel-Movat's

No grupo GDA, houve perda de afinidade tintorial, sugerindo que o tecido era necrótico e desvitalizado. As fibras colágenas, coradas em amarelo, se mostraram rotas e desorganizadas. A quantidade de glicosaminoglicanos, corados em azul ou verde azulados, estava bastante reduzida. A camada neointimal ficou bem caracterizada, com pequena quantidade de glicosaminoglicanos e com poucas células inflamatórias (Figura 2C). Já, no grupo DESCEL, houve maior afinidade tintorial (metacromasia) quando comparado ao grupo controle. A matriz extracelular também mostrava algum grau de desorganização, entretanto, as fibras colágenas estavam dispostas paralelamente e as fibras elásticas estavam relativamente intactas, com pouca fragmentação, havendo maior quantidade de glicosaminoglicanos. A formação neointimal também era intensa, com as mesmas características do grupo controle e mais glicosaminoglicanos (Figura 2D).

Coloração Alizarin-red PH 4,2 e 7,0

No grupo GDA, observou-se acentuada deposição de cristais de fosfato e oxalato de cálcio nas cúspides valvares e alguns pontos do conduto. Já, no grupo DESCEL, esses depósitos estavam ausentes, observando-se somente alguns pontos focais de calcificação junto às linhas de sutura (Figura 3).

 

 

 

Quantificação do cálcio

Os valores para a quantidade de cálcio, em ambos os grupos, estão detalhados na Tabela 2 e na Figura 4.

 

 

 

 

 

A quantidade de cálcio foi maior nas cúspides valvares do que nos condutos, em ambos os grupos. Comparativamente, houve redução do conteúdo de cálcio tanto nas cúspides como nos condutos do grupo DESCEL, entretanto, essa diferença só foi estatisticamente significante para as cúspides valvares (P= 0,009).

 

DISCUSSÃO

Próteses valvares biológicas têm diversas vantagens em relação às próteses mecânicas, e as indicações para o seu uso, em nível mundial, têm sido crescente nos últimos anos [2]. Apesar dos avanços tecnológicos no projeto das próteses e nos métodos de tratamento químico de tecidos biológicos, a degeneração tecidual por calcificação distrófica ainda é problemática. É bem determinado que, a presença de células e debris celulares facilitam o início do processo de calcificação. Assim sendo, a descelularização surge como uma alternativa promissora para eliminar ou retardar a calcificação distrófica [17,18].

Nesse trabalho, pudemos demonstrar a efetividade da descelularização de pericárdios bovinos com SDS 0,1%, havendo remoção completa das células e adequada preservação da matriz extracelular, confirmando as observações de Oswal et al. [19].

O uso de pericárdios descelularizados resultou em diferenças significantes nas avaliações macro e microscópicas entre os dois grupos aqui analisados. Por ocasião dos explantes, observamos que as aderências em torno dos tubos descelularizados foram bem menos intensas do que no grupo GDA, sugerindo que o tecido descelularizado foi mais biocompatível. Esses achados confirmam as observações de Costa et al.23 com heteroenxertos porcinos descelularizados implantados em posição pulmonar de ovinos.

Histologicamente, a maior celularidade tecidual juntamente com melhor preservação da matriz extracelular e ausência de calcificação também parecem indicar melhor biocompatibilidade do grupo DECEL em relação ao grupo GDA, entretanto, essa interpretação fica limitada por falta de análise imunohistoquímica mais detalhada. Além disso, a maior quantidade de glicosaminoglicanos no grupo DECEL pode ter sido fator adicional na redução da calcificação, uma vez que eles exercem efeitos protetores à matriz por diminuírem o impacto produzido pelo estresse, além de modular a reação inflamatória [18].

Pudemos constatar, em ambos os grupos, que a calcificação foi mais intensa nas cúspides valvares do que na parede dos condutos, confirmando as observações de Gabbay et al. [7] e Pires et al. [6] de que a calcificação depende não somente do sítio de implantação, mas também do estresse mecânico sobre o tecido. Isso também ficou evidenciado na análise radiográfica, onde pudemos observar, no grupo GDA, concentrações de cálcio mais intensas nas regiões comissurais e na base dos folhetos junto à sua inserção no conduto, com padrões semelhantes aos descritos por Flameng et al. [22] em biopróteses de pericárdio bovino implantadas em posição mitral de carneiros. Por sua vez, a descelularização foi efetiva como método anticalcificante nas cúspides dos condutos DESCEL que se mostraram radiograficamente livres de cálcio, havendo apenas alguns pontos focais de calcificação nas regiões traumatizadas pelas linhas de sutura proximal. Segundo Vesely et al. [8], a calcificação nessas regiões que sofrem maior estresse mecânico é uma consequência da ruptura progressiva das fibras colágenas.

A eficiência dos métodos anticalcificantes tem sido variada na literatura, dependendo do tecido e modelo experimental empregado. A maioria dos trabalhos empregou o modelo de implante em TCSC de ratos, o que limita a sua interpretação, pois não avalia a influência dos efeitos da corrente sanguínea e do estresse tecidual na calcificação [12,13,15,16,21]. Nosso grupo de pesquisa avaliou o efeito da descelularização com SDS em pericárdios bovinos fixados em GDA e implantados no TCSC de ratos por até 90 dias, observando-se redução de 98% na quantidade final de cálcio (65,91 µg/mg de tecido versus 1,24 µg/mg de tecido) (dados não publicados). Costa et al. [21]encontraram em implante de pericárdio bovino descelularizado em ratos em 90 dias ausência de calcificação.

Na literatura, existe apenas um trabalho experimental com modelo de ovinos que utilizou tratamento com detergentes em pericárdio bovino como método anticalcificante, visando à remoção fosfolipídica [22]. Flameng et al. [22] encontraram valores de 1,.05 ìg de cálcio/ mg de tecido nas cúspides de próteses biológicas com pericárdio bovino tratadas com o detergente não iônico tween-80 implantadas em posição mitral de carneiros por cinco meses. Nosso estudo demonstrou que, nas cúspides valvares, a quantidade de cálcio foi significativamente reduzida em 65% após 6 meses de evolução (grupo GDA 264 ìg de cálcio/mg de tecido versus grupo DECEL 94 µg cálcio/mg de tecido). Achamos importante ressaltar que, por uma limitação metodológica, os segmentos de cúspides analisados englobaram a linha de sutura proximal, o que certamente contribuiu para um aumento na concentração final de cálcio. Acreditamos que, se as cúspides tivessem sido recortadas junto a sua base de implantação, os valores finais de cálcio no grupo DESCEL teriam sido ainda menores, visto a ausência de calcificação histológica nas cúspides valvares.

A avaliação ecocardiográfica, apesar de limitada pelo baixo número de observações, demonstrou que os condutos do grupo GDA tinham cúspides calcificadas, com importante redução de sua mobilidade e gradientes transvalvares elevados. Ao contrário, no grupo DESCEL, as cúspides eram móveis, havendo, ocasionalmente, discreto espessamento das mesmas, com gradientes transvalvares inferiores ao grupo controle. A presença de obstrução moderada com alguma elevação de gradientes nas próteses morfologicamente preservadas do grupo DESCEL foi secundária à "desproporção prótese/animal" em decorrência do significativo ganho pondero-estatural dos animais que dobraram de peso nos 6 meses de evolução pós-operatória.

Em conclusão, esse trabalho demonstrou, no modelo circulatório de ovinos, que tubos valvulados de pericárdio bovino descelularizados com SDS 0,1% tiveram melhor biocompatibilidade e sua matriz extracelular ficou mais bem preservada quando comparados com tubos valvulados fixados de forma convencional em GDA. A descelularização com SDS 0,1% foi eficaz como método anticalcificante, especialmente nas cúspides valvares, que se demonstraram mais suscetíveis à degeneração por calcificação distrófica quando comparados à parede do conduto. Uma vez confirmada que a durabilidade de próteses valvares construídas com pericárdio bovino descelularizado seja equivalente à das próteses com pericárdio bovino fixadas em GDA pelo método convencional, a sua aplicação clínica deve ser considerada, e poderá representar um avanço significativo, especialmente para pacientes mais jovens, onde a calcificação precoce ainda é problemática com as próteses valvares atuais.

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Article receive on sexta-feira, 25 de março de 2011

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