Luiz Fernando Caneo
DOI: 10.5935/1678-9741.20120031
Fica cada vez mais evidente o quanto a falta de serviços de cirurgia pediátrica sustentáveis em países em desenvolvimento ou emergentes é responsável pelo expressivo número de mortes evitáveis e complicações decorrentes de doenças cardíacas potencialmente tratáveis. Quanto mais nos aproximamos do mundo desenvolvido, mais a cardiopatia congênita contribui com o número de mortes evitáveis no período neonatal e no primeiro ano de vida. Nesse contexto, a cirurgia cardíaca pediátrica representa, talvez, um dos maiores desafios para nosso País.
Passamos, então, a perguntar o que deve ser preservado, o que pode ser feito para melhorar, por quem, como e o que devemos transformar?
Aquilo devemos preservar
Contribuições científicas na cirurgia pediátrica, como a Operação de Jatene, a técnica de Teles para a coarctação da aorta, a técnica de Barbero-Marcial na correção do tronco arterial comum, no passado, e mais recentemente, a técnica do Cone, de José Pedro da Silva, para o tratamento de Ebstein, são exemplos da criatividade, capacidade técnica e inovação de nossos cirurgiões. A força do trabalho em nossa cultura assistencial é muito marcante e fez com que nossa cirurgia, enquanto dependente do esforço individual, sempre se destacasse no cenário local e mundial. Liderança, tolerância, perseverança, dedicação e capacidade de adaptação têm sido a chave do sucesso, mas não necessariamente asseguram a sustentabilidade. Tornar a cirurgia cardíaca pediátrica uma realidade no Brasil é fruto do trabalho de "poucos homens para um desafio tão grande" [1].
O que devemos melhorar
Em países como o nosso, onde inúmeras são as prioridades em saúde pública, a cirurgia cardíaca pediátrica é considerada, muitas vezes, um problema secundário a ser resolvido. Isso explica o número de crianças operadas, que não chega a 40% da demanda populacional, com cenários bastante variáveis, dependendo da região do país [2]. Esse cenário piora quando analisamos os números de neonatos operados e os procedimentos de maior complexidade realizados. São poucos os locais preparados para a realização de cirurgia neonatal e muitos apresentam capacidade limitada diante da grande demanda. Fica difícil imaginar o número de crianças evoluindo com hipertensão pulmonar secundária a uma comunicação interventricular não operada ou uma disfunção miocárdica decorrente de uma lesão obstrutiva.
Não são apenas problemas estruturais, pois a escassez de recursos humanos é evidente e preocupante em muitas regiões. Não se trata somente da falta de cirurgião, faltam cardiologistas pediátricos, enfermeiros especializados e todos os demais profissionais. Num sistema complexo como a cirurgia cardíaca pediátrica, o resultado cirúrgico depende não só de fatores técnicos, mas é o resultado de fatores organizacionais, pessoais e de suas interações [3].
"No human investigation can claim to be scientific if it doesn't pass the test of mathematical proof."- Leonardo Da Vinci.
No Brasil, a avaliação dos resultados cirúrgicos só é possível por meio dos dados governamentais, pelo DATASUS. Uma análise mais detalhada desses dados é muito difícil de ser realizada, tanto pela terminologia dos procedimentos utilizada pelo governo, quanto pela dificuldade na estratificação de risco dos procedimentos realizados. Não temos, até o momento, um banco nacional de dados, e poucos são os centros que participam de bancos de dados internacionais ou têm a cultura de analisar os seus resultados. Informações um pouco mais detalhadas, de doenças específicas, são apresentadas em congressos ou artigos científicos, porém muitas vezes não refletem a totalidade dos casos operados e não representam a realidade assistencial. Além disso, a maioria tem como foco apenas o sucesso e, raramente, discutem os problemas e os motivos dos resultados não satisfatórios.
Ignorado durante muito tempo, esse assunto tem causado muita preocupação à população, ao governo e, principalmente, ao cirurgião cardiovascular, que convive com a gravidade do problema e percebe que a situação atual é inaceitável. O sistema atual de atendimento à criança cardiopata é ineficiente.
O que devemos transformar
Transformar o modelo centrado no desempenho individual em um verdadeiro programa de cirurgia cardíaca pediátrica de forma sistemática, talvez seja um dos nossos maiores desafios. Reconhecer a realidade, aceitar nossas falhas e repensar o modelo parece ser um bom início. Ir além das nossas qualidades técnicas significa reescrever nossas instituições, seus processos e a forma de trabalhar no sistema de saúde de alta complexidade.
A necessidade de colaborar na solução desses problemas é cada vez mais evidente. A criação do Departamento de Cirurgia Cardíaca Pediátrica dentro de nossa sociedade de especialidade, em 2003, abriu um espaço que possibilitou a discussão mais profunda dos problemas e a oportunidade de encontrar soluções adaptadas às adversidades e às diferenças regionais observadas. Desde então, reuniões importantes aconteceram no intuito de discutir o cenário atual, a educação e a formação. Mais recentemente, um movimento ainda maior na procura de soluções foi deflagrado em conjunto com a Sociedade Brasileira de Cardiologia e Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista. Com o objetivo de construir um programa nacional de assistência à criança com cardiopatia congênita a ser apresentado ao governo federal, nossa sociedade se mostrou com sua posição bem definida e consolidada.
Nesta edição da RBCCV, o artigo "Tratamento das cardiopatias congênitas em Sergipe: proposta de racionalização dos recursos humanos para melhorar a assistência", de Leite et al. [4] (página 224), representa o esforço de um grupo de pessoas em se organizar e estruturar o sistema de saúde de um estado, no que se refere à atenção à criança com cardiopatia congênita. É de forma exemplar que os autores colocam em prática alguns pontos importantes, como a otimização dos recursos existentes e a centralização do atendimento à alta complexidade. Apresentam os dados de forma estruturada, distribuídos por complexidade, e fazem uma análise crítica dos resultados observados. Demonstram de forma objetiva resultados superiores no número de procedimentos realizados, diminuição da mortalidade, aumento no número de crianças atendidas e incremento no número de complexidade, após a centralização das cirurgias em um determinado hospital.
É o resultado do trabalho de pessoas que não se limitaram apenas às suas contribuições técnicas prévias, mas perceberam que podem ir além do centro cirúrgico e atuar diretamente no sistema de saúde governamental. Criando, sugerindo e implementando ações que, com certeza, passam a modificar os seus próprios resultados técnicos.
Infelizmente, soluções baseadas no esforço pessoal não se sustentam. Somente a interdependência dos componentes abaixo citados poderá assegurar preservação, melhoria e transformação de nosso cenário atual (Neirotti RA, comunicação pessoal):
% Governo local e federal: por meio da implementação de políticas de saúde adequadas e garantia dos recursos necessários para o seu financiamento, considerando que a maioria dos pacientes depende do Sistema Único de Saúde.
% Universidades e demais entidades de ensino: aumentando o capital humano por meio da melhoria da qualidade da educação.
% Sociedades de especialidades: contribuindo com o seu conhecimento e sua capacidade em defender as boas práticas da especialidade.
% Instituições hospitalares: promovendo a participação ativa da alta direção no suporte às necessidades estruturais, organizacionais e pessoais da especialidade.
% Fontes pagadoras não-governamentais: no entendimento de que o sistema de saúde é único e que o setor privado é parte do problema e as soluções devem ser resolvidas em conjunto.
% Profissionais da saúde: reconhecendo a importância do trabalho em equipe, pois embora o conhecimento e a prática clínica individual sejam importantes para a saúde de alta qualidade, hoje sabemos que um profissional por mais capacitado que esteja não consegue sozinho fazer uma medicina de qualidade.
Somente a união dos pensamentos e objetivos expostos acima dos interesses pessoais podem preservar, melhorar e transformar nossa especialidade.
REFERÊNCIAS
1. Stolf NA. Congenital heart surgery in a developing country: a few men for a great challenge. Circulation. 2007;116(17):1874-5. [MedLine]
2. Pinto Júnior VC, Daher CV, Sallum FS, Jatene MB, Croti UA. Situação das cirurgias cardíacas congênitas no Brasil. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2004;19(2):III-VI. Visualizar artigo
3. Dearani JA, Neirotti R, Kohnke EJ, Sinha KK, Cabalka AK, Barnes RD, et al. Improving pediatric cardiac surgical care in developing countries: matching resources to needs. Semin Thorac Cardiovasc Surg Pediatr Card Surg Annu. 2010;13(1):35-43. [MedLine]
4. Leite DCF, Mendonça JT, Cipolotti R, Melo EV. Tratamento das cardiopatias congênitas em Sergipe: proposta de racionalização dos recursos para melhorar a assistência. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2012;27(2):224-30. Visualizar artigo