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ARTIGO ESPECIAL

Uma reflexão sobre o desempenho da cirurgia cardíaca pediátrica no Estado de São Paulo

Luiz Fernando CaneoI; Marcelo Biscegli JateneII; Nelson YatsudaIII; Walter J GomesIV

DOI: 10.5935/1678-9741.20120076

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

CID: Classificação Internacional de Doenças

DATASUS: Banco de dados do Sistema Único de Saúde

IDH: Índice de Desenvolvimento Humano

OMS: Organização Mundial da Saúde

OPAS: Organização Pan-Americana de Saúde

PIB: Produto interno bruto

RIPSA: Rede Interagencial de Informações para a Saúde

SEADE: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados

SES-SP: Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo

TMI: Taxa de mortalidade infantil

UTI: Unidade de Terapia Intensiva

INTRODUÇÃO

A prevalência de cardiopatias congênitas é 9 crianças por 1000 nascidos [1] e estima-se o surgimento de 28.846 novos casos de cardiopatias congênitas no Brasil por ano. Em torno de 20% dos casos, a resolução do defeito é espontânea, estando relacionada a defeitos menos complexos e de repercussão hemodinâmica discreta [2]. Com base nesses parâmetros, a necessidade média de cirurgia cardiovascular em cardiopatia congênita no Brasil é da ordem de 23.077 procedimentos/ano, fazendo parte dessa estimativa, além dos novos nascimentos com cardiopatia congênita, os casos de reintervenções dos pacientes operados em evolução. No ano de 2002, foram operados 8.092 pacientes, o que evidencia uma defasagem de 65%, sendo que os maiores índices estão nas regiões Norte e Nordeste (93,5% e 77,4%, respectivamente) e os menores nas regiões Sul e Centro-Oeste (46,4% e 57,4%, respectivamente) [2]. O tratamento precoce das cardiopatias congênitas modifica a sua história natural, evitando a morte precoce, diminuindo substancialmente as internações sequenciadas por complicações da doença, além de proporcionar melhor qualidade de vida. Sabe-se que 50% dos portadores de cardiopatias congênitas devem ser operados no primeiro ano de vida. Assim, são necessários 11.539 novos procedimentos/ano no Brasil. Como o setor público absorve 86,1% dos casos, estima-se um déficit de 80,5%. A situação é mais crítica nas regiões Norte e Nordeste, com déficit de 97,5% e 92%, respectivamente [2].

O Brasil é um país de dimensões continentais, e inúmeras são as diferenças regionais. Estabelecer parâmetros objetivos para avaliar nossos resultados tanto quantitativos quanto qualitativos que possam ser comparados aos dos países onde a assistência à criança com cardiopatia congênita tem se mostrado mais eficiente é um grande desafio. Considerando o Estado de São Paulo como referência, procuramos encontrar um país comparável economicamente e demograficamente, traçando um paralelo, no que se refere à qualidade da assistência a portadores de cardiopatias congênitas que necessitam de cirurgia.

Recentemente, em uma publicação da revista "The Economist", os estados brasileiros foram comparados a países quanto ao seu produto interno bruto (PIB) individual e seu PIB per capita. Utilizando esses critérios, o estado de São Paulo equivaleu à Polônia, ou seja, a um país com renda per capita maior que US$ 12.276, o que segundo o Banco Mundial é classificado como fazendo parte do grupo de países com renda per capita alta. São Paulo sempre foi considerado como um dos estados mais desenvolvidos e prósperos do país, e embora não ocupe a primeira posição nessa publicação, ele fica em segundo lugar, perdendo apenas para o Distrito Federal. Embora o Distrito Federal tenha um PIB menor, o PIB per capita é comparado ao de Portugal e maior que o da Polônia.

Quando utilizamos outros indicadores para avaliar o nosso desenvolvimento, o resultado observado reforça nossa posição de igualdade aos países desenvolvidos. Considerando, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). São Paulo ocupa o terceiro lugar do ranking entre os estados brasileiros, onde o seu índice é de 0,82, mais uma vez muito próximo da Polônia que é de 0,81. O Distrito Federal ocupa o primeiro lugar com índice de 0,844, seguido de Santa Catarina em segundo, com 0,822. Apesar de ocupar a terceira posição, São Paulo teve um aumento do IDH de apenas 5,4% na década de 90 e, por isso, caiu do segundo para o terceiro lugar.

Ou seja, alguns estados brasileiros são comparáveis a muitos países da Europa do ponto de vista econômico financeiro. O Estado de São Paulo, por sua vez, pode ser considerado um estado rico, desenvolvido e comparado economicamente a uma nação do primeiro mundo. O crescimento econômico de nosso país tem sido amplamente divulgado e comemorado nas mais diversas fontes de informação local e internacional.

Se economicamente estamos ocupando um cenário bastante otimista, como estamos nos comportando no atendimento à criança cardiopata? Inúmeros são os indicadores que poderíamos utilizar nessa avaliação, mas gostaríamos de chamar atenção para a taxa de mortalidade infantil e o seu decréscimo observado no Estado de São Paulo, que foi publicada recentemente pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) em seu boletim nº 6, de agosto de 2011. A taxa de mortalidade infantil (TMI - que corresponde à relação entre o número de óbitos de menores de um ano de idade, por mil nascidos vivos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado) esperada para um país com renda superior a USD 12,276 é de 6 por mil.

O observado no Estado de São Paulo em 2010 foi de 11,9 por mil, 5% inferior àquela registrada em 2009 (12,5 óbitos por mil nascidos vivos). Comparando-a com as de anos mais distantes, observa-se que a TMI diminuiu 30% em relação a 2000 (17,0 por mil) e 62% frente a 1990 (31,2 por mil). Embora superior ao esperado para locais com o mesmo PIB per capita, ou seja, com o mesmo índice de desenvolvimento econômico, esse resultado reafirma a posição de São Paulo como um dos estados com menor risco de morte infantil no Brasil de acordo com a Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA), formalizada por Portaria Ministerial (Portaria nº 2.390/GM, Ministério da Saúde), e partícipe de termo de cooperação com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS), responsável pela normatização e disseminação das informações oficiais sobre saúde no país.

Se nos aprofundarmos na análise desses números, poderemos entender o motivo dessa diferença. Na análise mais detalhada desses dados, identificamos que, entre as causas de mortalidade infantil segundo os capítulos de causas de morte da CID-10 (OMS, 1998), apenas dois deles - perinatais e malformações congênitas - são responsáveis atualmente por 80% das mortes em São Paulo. As causas perinatais, isto é, as relacionadas a problemas na gravidez, no parto e no nascimento, em relação a 2000, diminuíram cerca de 30% e foram as principais responsáveis pelo decréscimo da mortalidade infantil, no período (63% do total da redução). Já as mortes infantis por malformações congênitas apresentaram, no mesmo período, a menor diminuição das taxas - apenas 12%. Assim, sua participação no total dos óbitos infantis aumentou de 17% (2000) para 21% (2010).

O interessante é que as malformações congênitas do coração são a principal causa de óbito dentro desse grupo. Se considerarmos que a cardiopatia congênita pode ser tratada, ou seja, pode ser considerada uma morte evitável, o adequado atendimento dessa população acarretará importante diminuição na TMI. Assim, os problemas de saúde pública, no estado de São Paulo, assim como o de países ricos e desenvolvidos, não se restringem a saúde básica e são problemas decorrentes também de especialidades complexas, como a cardiologia e cirurgia cardíaca pediátrica. Para se ter uma ideia, as cardiopatias congênitas se mostraram responsável pelo declínio de 59% do total de óbitos nos Estados Unidos nos anos de 1970 a 1997, com a melhora dos resultados no tratamento das mesmas [3].

Quando analisamos os óbitos abaixo de 1 ano de idade, segundo dados preliminares do Banco de dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS), no ano de 2010 ocorreram 7155 óbitos, sendo que deste total, 1490 (21% da TMI) foram por malformações congênitas como causa básica dos óbitos, sendo as cardiopatias congênitas, as malformações mais frequentes, ocorrendo como causa básica em 607 óbitos (40% das malformações). Do total de óbitos infantis, observamos em 1.012 (14,2% da TMI) tinham um código da Classificação Internacional de Doenças (CID) de cardiopatia congênita em qualquer linha de causa no atestado de óbito (Parte I ou II de causas da morte da declaração de óbito).

O estado de São Paulo é reconhecido como um dos principais centros de cirurgia cardíaca pediátrica do País e conta com 12 Serviços, sendo seis na cidade de São Paulo e seis no interior do Estado. No ano de 2010, foram realizados no Estado de São Paulo 600 cirurgias em crianças com até um ano de idade (160 neonatos e 440 até um ano), com uma mortalidade média hospitalar de 14%, sendo nos neonatos (até 28 dias) de 26,8% e de 9,32% nas crianças com 29 dias até 1 ano de idade (dados da Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo - SES-SP). A demanda populacional calculada para essa população é de 2.693 cirurgias anualmente.

Considerando que cerca de 50% dessas crianças necessitam de algum tipo de procedimento cirúrgico durante o primeiro ano de vida, a demanda é de 1.300 procedimentos nessa faixa etária, e ao menos 80% pelo sistema público de saúde. Considerando que o total de cirurgias realizadas em crianças com idade inferior a 1 ano de idade no ano de 2010 foi de 600, nossos números demonstram um déficit de 54% nessa faixa etária.

A Polônia tem uma população atual superior a 38 milhões de habitantes, muito semelhante a São Paulo. No ano de 2010, a Polônia apresentou uma TMI de 6,8 por mil, bastante próxima à esperada para a sua condição econômica. Como visto anteriormente, a demanda por cirurgia cardíaca varia de acordo com o número de nascidos vivos. Para que possamos estabelecer uma comparação com o Estado de São Paulo, no que se refere à necessidade populacional de cirurgia cardíaca pediátrica e o número de procedimentos realizados, devemos utilizar um indicador que possa avaliar o número de nascidos vivos, por mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado (índice de natalidade).

Observamos que a Polônia apresentou menor número de nascimentos (índice de natalidade: 9,5 nascimentos/1000 habitantes ou índice de fertilidade: 1,23 nascimentos/mulher) que o estado de São Paulo (índice de natalidade: 13,3 nascimentos/1000 habitantes ou índice de fertilidade: 1,78 nascimentos/mulher), no ano de 2010. Por outro lado, o número absoluto de cirurgias em crianças com idade inferior a 1 ano operados na Polônia foi superior ao realizado no Estado de São Paulo (1646 crianças, sendo 637 neonatos e 1009 lactentes com mortalidade de 8,7 e 4,7%, respectivamente) - dados obtidos do National Report da Polônia, EACTS Congenital Database, e enviados pelo Dr. Tobota e Bohdan Maruszewski -, no mesmo período. Se considerarmos as taxas de natalidade, necessidade populacional de cirurgias no primeiro ano de vida e número de cirurgia realizadas no ano de 2010, a Polônia realizou 100% da sua necessidade, enquanto o Estado de São Paulo apenas 50%. Além do menor e insuficiente número de procedimentos pela demanda populacional, os resultados cirúrgicos quando comparados aos da Polônia, independente do grau de complexidade dos mesmos, mas relacionados ao mesmo grupo etário, são inferiores aos daquele país (a mortalidade hospitalar observada nos serviços do Estado de São Paulo: 26,68% e 9,3%, nos serviços da Polônia 8,7% e 4,7% para neonatos e lactentes, respectivamente).

Na tentativa de explicar esse cenário, a primeira impressão é que falta acesso em nosso estado, e talvez aumentar o número de centros seria uma solução que rapidamente vem à tona. A solução, porém, não parece ser o aumento do número de centros e, sim que aqueles que já existem produzam aquilo que é esperado deles. Quando estiverem no seu limite de produção, podemos falar em aumentar o número de centros. Isso pode ser visto quando analisamos a produção dos serviços do estado (relatório SES-SP), muitos deles não realizam o número mínimo previsto pela portaria 210 que orienta o seu credenciamento. Quanto aos resultados, estudos recentes demonstram que eles dependem de muitos fatores, não somente técnicos, mas referentes ao volume cirúrgico do centro, estrutura organizacional e tecnológica do mesmo entre outros. A cirurgia cardíaca pediátrica tem muito em comum com sistemas de alta tecnologia, onde a performance e os resultados dependem de fatores individuais, técnicos, organizacionais, e suas interações. Por se tratar de fatores multivariados, uma análise mais detalhada deve ser realizada para entendermos esse cenário.

Se considerarmos a importância da cardiopatia congênita na composição da TMI nos países mais ricos, melhorar a assistência nessa especialidade deverá causar um importante impacto em sua redução. Para que possamos atingir os índices na TMI em São Paulo equivalente aos índices da Polônia, e a dos chamados países desenvolvidos, é fundamental, além de melhorar o diagnóstico pré-natal e a assistência ao parto, aumentar o número de procedimentos cirúrgicos em cardiopatias congênitas e melhorar os resultados imediatos atuais.

A garantia de acesso da criança cardiopata à rede de atendimento especializado e a melhoria dos resultados cirúrgicos dos serviços especializados são peças fundamentais para que se tenha diminuição expressiva na mortalidade infantil no Estado de São Paulo. Em estados como o nosso, o adequado tratamento das cardiopatias congênitas, garantindo acesso aos que necessitam, incentivo aos centros capacitados para esse atendimento, capacitação permanente do pessoal envolvido e investimento adequado passou a ser um importante problema de saúde pública.

Embora cara, altamente especializada e complexa, o desenvolvimento de uma cirurgia cardíaca pediátrica bem estruturada ocupa hoje um importante papel na política de saúde pública, em especial nos estados que atingiram elevado grau de desenvolvimento econômico. A dificuldade de acesso é apenas mais um dos problemas gerados pela pobreza e desigualdade onde a cirurgia cardíaca pediátrica não é considerada prioridade e ela não pode ser realizada se houver falta de dinheiro ou infraestrutura [4]. Se alguns estados necessitam de número maior de centros, outros se beneficiarão de melhorias nos centros já existentes.

De qualquer forma, a rede de assistência à criança cardiopata necessita ser repensada e reestruturada de forma prioritária. Não há dúvida que a falta de financiamento adequado, a falta de centros especializados em determinadas regiões, de pessoal treinado, educação permanente e a organização da rede tem um papel fundamental nesse cenário. No que se refere ao financiamento, acreditamos que não se resume apenas a um aumento de seus valores, mas a forma de gestão do mesmo. Observamos, recentemente, que embora mais dinheiro tenha sido destinado à cirurgia cardíaca pediátrica nos últimos anos, pouco impacto tivemos quanto ao aumento do número de cirurgias.

Utilizando a Polônia como exemplo, como explicar que o gasto per capita em saúde na Polônia, semelhante ao do Estado de São Paulo (6,12% versus 5,94% do PIB em USD - ano de 1997, World Bank 2002), tenha melhores resultados (número de cirurgias pela demanda populacional, resultados cirúrgicos imediatos, entre outros indicadores analisados). O dinheiro destinado pelo governo federal nem sempre chega ao serviço de cirurgia cardíaca pediátrica da forma como deveria. São inúmeras as causas, mas talvez o mais importante é que não exista uma discriminação da cirurgia cardiovascular pediátrica separada da cirurgia cardiovascular em geral na contratação de serviço entre o prestador e o governo local.

Poucos centros possuem um contrato específico para a cirurgia cardíaca pediátrica, o que faz com que o teto financeiro seja alocado de acordo com o interesse institucional e pessoal dentro da cirurgia cardíaca em geral, incluindo marca-passo e hemodinâmica. Muitas vezes, o orçamento da cirurgia cardíaca pediátrica é destinado aos procedimentos menos complexos, de menor custo ou de maior interesse institucional ou pessoal. A remuneração diferenciada de acordo com a complexidade do procedimento parece ser também outro grande problema, em especial para aqueles que atendem aos casos de maior complexidade.

O fato de não haver quase diferenciação no pagamento do procedimento respeitando seu grau de complexidade pune o centro de referência que se dedica aos casos mais complexos e desestimula o crescimento do número de procedimentos em neonatos e lactentes, em especial nos escores de complexidade mais elevados. Alguns estudos internacionais têm demonstrado que existe uma relação linear entre a complexidade e o custo do procedimento [5]. Isso também foi observado em nosso meio [6], onde se utilizando o agrupamento dos procedimentos por meio da classificação pelo Aristotle Basic Score [7] observou-se que os pacientes com classificação mais alta necessitaram do dobro de tempo de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Esses mesmos pacientes realizaram número maior de exames, testes diagnósticos e procedimentos. A presença de infecção antes do procedimento, independente do grupo etário e complexidade, triplica o custo do procedimento. Infecção pós-operatória aumenta em três vezes o custo do tratamento cirúrgico nos neonatos e adolescentes e duplica o custo nos pacientes mais complexos. Se o todo não melhora, provavelmente a alta complexidade será penalizada pela ineficiência do sistema.

A baixa remuneração, o alto custo e a alta complexidade fazem com que poucos centros realizem mais de 250 casos por ano no Brasil, número esse considerado ideal para se obter resultados adequados na cirurgia de cardiopatias congênitas, para que se tenha bons resultados cirúrgicos e baixa mortalidade [8]. Poucos são os centros de cirurgia cardíaca pediátricas localizados em hospitais pediátricos, e o número de pessoal treinado nessa área do conhecimento é muito pequeno.

Em entrevista realizada entre os cirurgiões pediátricos brasileiros [9], apenas 29% dos cirurgiões que se consideraram cirurgiões pediátricos (uma vez que não existe essa área de interesse na cirurgia cardiovascular brasileira) afirmaram que estão capacitados para realizar qualquer tipo de procedimento, independente da idade da criança.

Embora a acurácia e a qualidade técnica da cirurgia tenham um papel determinante na sobrevida pós-operatória dos neonatos e lactentes, somam-se a elas o diagnóstico precoce, volume cirúrgico do centro, presença de mão de obra especializada interdisciplinar muito bem treinada, tecnologia avançada e infraestrutura adequada à complexidade. Liderança, habilidades técnicas e não técnicas também são necessárias para resolver esses problemas - um quebra-cabeça de múltiplos desafios - em especial na cirurgia neonatal, que, apesar de algumas exceções, continua sendo um grande problema na maioria dos países subdesenvolvidos. Complexidade requer complexidade: menos é menos no que se refere à cirurgia neonatal! [10].

A contribuição individual de cirurgiões brasileiros na cirurgia cardíaca pediátrica é bastante marcante, desde a Operação de Jatene para transposição das grandes artérias até, mais recentemente, a Operação do Cone, para a correção da insuficiência tricúspide na doença de Ebstein. É indiscutível a capacidade técnica de nossos cirurgiões. Porém, como visto anteriormente, em um sistema complexo, as habilidades técnicas individuais não são isoladamente responsáveis pelo resultado obtido. Os resultados na cirurgia de alta complexidade dependem de todo o sistema hospitalar e sua interação com o capital humano treinado tecnicamente e não tecnicamente (habilidades cognitivas e não cognitivas).

Mover nosso sistema atual, centrado na capacidade individual da pessoa para um sistema de saúde interdependente e interdisciplinar, com políticas bem estabelecidas, centrado na qualidade, segurança do paciente e sustentabilidade deve ser o nosso objetivo. Para isso, estabelecer adequado e justo financiamento, educação e treinamento, monitoramento contínuo e objetivo dos resultados com a participação ativa junto aos órgãos governamentais em posições de direito é fundamental.

Comparando São Paulo com a Polônia vimos que mesmo na semelhança temos diferenças, e não há dúvida que, se identificarmos essas diferenças, poderemos atingir uma cirurgia cardíaca pediátrica de excelência nesse país de desigualdades. Encontrar o que é comum em nossos problemas e concentrar esforços em resolvê-los pode ser a melhor solução ("We all do better when we work together. Our differences do matter, but our common humanity matters more." President Clinton.)

Hoje, a cardiopatia congênita já ocupa um grande papel na saúde pública em alguns estados brasileiros e, certamente, ocupará em um futuro próximo importante papel nas demais regiões. Se resolvermos alguns pontos em comum, certamente estaremos nos preparando para que todos os nossos problemas se resolvam, em uma progressiva escalada de prioridades.

The most important thing I've learned in government is that you can't propose anything that will work in Brazil as a whole.

Vilmar Faria

Entre as diversas ações necessárias, elegemos algumas que, nesse momento, consideramos importantes e comuns em nossa diversidade:

Melhorar o acesso aos centros de cirurgia cardíaca pediátrica:

melhorar o acesso da criança cardiopata aos centros especializados;

ampliar a capacidade produtiva e qualificar os centros já existentes;

abrir novos centros nas regiões desassistidas;

planejar e executar as políticas referentes a cardiologia e cirurgia cardíaca pediátrica de forma organizada, com o apoio dos centros já bem estabelecidos, respeitando as distâncias geográficas, com a participação ativa da sociedade junto aos órgãos governamentais, por meio de suas câmaras técnicas e respeitando-se as necessidades regionais;

Implementar políticas que aumentem a capacidade do sistema de saúde em diagnosticar as cardiopatias congênitas, principalmente na fase ante-natal.

Melhorar o financiamento da Cardiologia e Cirurgia Cardíaca Pediátrica

encontrar uma nova maneira de garantir o financiamento da cirurgia cardíaca pediátrica por meio da revisão dos contratos existentes, formas de repasse e adequada remuneração, respeitando a complexidade. A essência dessa proposta é de que se consiga que o orçamento destinado à cirurgia cardíaca pediátrica seja efetivamente aplicado a ela e ao serviço dedicado a ela.

Melhorar a base de dados e promover a gestão por qualidade:

criar cultura da gestão por dados objetivos, benchmark, estabelecer padrões de qualidade, seja por meio da criação de banco de dados específico e/ou utilização de banco de dados já existentes.

Estabelecer programas de educação permanente:

estabelecer programas de treinamento nas diferentes profissões da área de saúde envolvidas com o atendimento da criança cardiopata. Estabelecer os centros de formação, em conjunto as demais entidade científicas, tanto na discussão curricular quanto no ensino integrado e treinamento de equipes especializadas.

Juntamente com o avanço observado em nosso cenário econômico atual, a complexidade de nossa especialidade, se bem equacionada, deverá nos colocar novamente em posição de destaque no cenário da cardiologia e cirurgia cardíaca pediátrica mundial.

Do ponto de vista regional, os serviços de cirurgia cardíaca pediátrica de São Paulo vêm se reunindo de forma regular, juntamente ao governo do Estado, através de representantes da SES-SP, para discutir, planejar e implementar ações no sentido de melhorar a rede de assistência à criança cardiopata nessa região. Recentemente, constitui-se uma Câmara Técnica, conforme prevista pela portaria MS 210 [11,12], onde representantes dos serviços, Departamento de Cirurgia Cardiovascular Pediátrica da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, Departamento de Cardiologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de Cardiologia, Secretaria Estadual de Saúde e Secretarias Municipais promovem discussões ordenadas baseadas em dados objetivos validados pelos Serviços executores, soluções para problemas levantados pelos gestores e dificuldades apontadas pelos próprios Serviços.

Todo esse esforço, embora recente, faz com que se conheçam os pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças a todos os integrantes da complexa rede de saúde pública, de forma consensual e coletiva. Esperamos que, nos próximos anos, nossa rede de atendimento, hoje com essas deficiências apontadas e conhecidas por todos nós, possa a ser comparada às daqueles países que ocupam posição de destaque no cenário mundial. Da mesma forma, esperamos que a experiência de nosso Estado venha a contribuir com os demais estados brasileiros, no sentido de que as soluções de problemas complexos depende da união de esforços de todos os lados do problema.

Promover melhorias no sistema público de atendimento à criança cardiopata não é um problema isolado do Governo, e talvez nós, como especialistas no assunto, devamos estar lado a lado, juntamente com a sociedade em geral, nesse esforço conjunto de melhorias.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer ao Dr. Bohdan Maruszewski e Dr. Zdzislaw Tobota, responsáveis pelo EACTS Congenital Database, pelos dados e informações referentes à Cirurgia Cardíaca Pediátrica da Polônia e ao Dr. Rodolfo A. Neirotti e Dr. Fabio B. Jatene, pela revisão e comentários sobre o texto. Gostariam, ainda, de registrar o esforço incondicional da Secretaria do Estado de Saúde do São Paulo, juntamente com os representantes dos serviços de cirurgia cardíaca do Estado de São Paulo, em encontrar as soluções necessárias para modificar o cenário atual aqui apontado.

REFERÊNCIAS

1. Pinto Jr VC, Daher CV, Sallum FS, Jatene MB, Croti UA. Situação das cirurgias cardíacas congênitas no Brasil. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2004;19(2):III-VI. Visualizar artigo

2. Pinto Jr VC, Rodrigues LC, Muniz CR. Reflexões sobre a formulação de política de atenção cardiovascular pediátrica no Brasil. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2009;24(1):73-80. [MedLine] Visualizar artigo

3. Lee K, Khoshnood B, Chen L, Wall SN, Cromie WJ, Mittendorf RL. Infant mortality from congenital malformations in the United States, 1970-1997. Obstet Gynecol. 2001;98(4):620-7. [MedLine]

4. Neirotti, R. Paediatric cardiac surgery in less privileged parts of the world. Cardiol Young. 2004;14(3):341-6. [MedLine]

5. Sinzobahamvya N, Kopp T, Photiadis J, Arenz C, Schindler E, Haun C, et al. Surgical management of congenital heart disease: correlation between hospital costs and the Aristotle complexity score. Thorac Cardiovasc Surg. 2010;58(6):322-7. [MedLine]

6. Trindade E, Jatene M, Caneo LF, Tanamati C, Riso AA, Abuchaim D, et al. Five-years follow-up of congenital heart surgery at the Heart of the Clinics Hospital/São Paulo Medical School, InCor-HC-FMUSP: HTAi 2010. Disponível em: http://www.htai2011.org/Sessoes_Orais2.asp Acesso em: 15/6/2012 In: 8th Annual Meeting HTAi; Rio de Janeiro, 2011.

7. Lacour-Gayet F, Clarke D, Jacobs J, Gaynor W, Hamilton L, Jacobs M, et al; Aristotle Committee. The Aristotle score for congenital heart surgery. Semin Thorac Cardiovasc Surg Pediatr Card Surg Annu. 2004;7:185-91. [MedLine]

8. Daenen W, Lacour-Gayet F, Aberg T, Comas JV, Daebritz SH, Di Donato R, et al; EACTS Congenital Heart Disease Committee. Optimal structure of a congenital heart surgery department in Europe. Eur J Cardiothorac Surg. 2003;24(3):343-51. [MedLine]

9. Pinto Jr VC. Avaliação da política nacional de atenção cardiovascular de alta complexidade com foco na cirurgia cardiovascular pediátrica [dissertação de mestrado]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2010.

10. Neirotti R. Access to cardiac surgery in the developing world: social, political and economic considerations - FAC - Federación Argentina de Cardiologia - In: 5th Congress of Cardiology on the Internet - 5th Virtual Congress of Cardiology - QVCC - Argentina; 2007.

11. Portaria nº 1169/GM em 15 de junho de 2004. Institui a Política Nacional de Atenção Cardiovascular de Alta Complexidade, e dá outras providências. Diário Oficial, seção 1, n. 115, p.57, 2004.

12. Portaria no 210 SAS/MS de 15 de junho de 2004. Serviços de cirurgia cardiovascular pediátrica. Diário Oficial, seção 1, n. 117, p.43. 2004.

Article receive on domingo, 1 de julho de 2012

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