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COMUNICAÇÃO BREVE

Folheto mitral acessório: uma causa incomum de estenose subaórtica

Marcos Alves PavioneI; José Teles de MendonçaII; Ivan Sérgio Espínola SouzaIII; Maria Amélia Fontes de Faria RussoIV

DOI: 10.5935/1678-9741.20120080

RESUMO

Criança de três anos, com estenose subvalvar aórtica sem definição precisa ao ecocardiograma, apresentando como diagnóstico cirúrgico um folheto mitral acessório.

ABSTRACT

Three-years-old boy presenting with a subvalvar aortic stenosis without a precise definition by echocardiography, where the surgical approach revealed an accessory mitral leaflet.

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

ESAo: estenose subvalvar aórtica

TMA: tecido mitral acessório

FMA: folheto mitral acessório

VSVE: via de saída do ventrículo esquerdo

CEC: circulação extracorpórea

INTRODUÇÃO

A estenose subvalvar aórtica (ESAo) corresponde a cerca de 1% das cardiopatias congênitas e geralmente se apresenta nas formas de membrana (segmento estreito) ou túnel (segmento mais extenso) [1], usualmente são adquiridas e progressivas. Uma causa rara de ESAo congênita é a obstrução por tecido mitral acessório (TMA), sendo aproximadamente metade dos casos gerada por um folheto mitral acessório (FMA) [2].

Existem poucos relatos na literatura de pacientes apresentando TMA, de forma que sua incidência em crianças não está bem estabelecida. Sabe-se que, em cerca de 70% dos casos, o diagnóstico é feito na infância (inclusive no período neonatal) e, geralmente, por sinais ou sintomas relacionados à obstrução [3]. Realizando ecocardiogramas seriados numa mesma instituição americana durante seis anos, Rovner et al. [4] obtiveram uma incidência de 1 caso para cada 26.000 exames realizados. Podem apresentar-se como defeito isolado em 30% dos casos, mas geralmente encontra-se associado a outras cardiopatias, sendo as mais comuns comunicação interventricular (CIV), aneurisma ventricular e cardiopatias complexas [2,5].

 

APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO

Recebemos no serviço um menino pardo de três anos de idade, pesando 13 kg. Era o terceiro filho de mãe sadia, com 25 anos. A história materna gestacional não incluía intercorrências notificáveis, negando uso de medicações durante a gravidez, exceto as vitaminas de prescrição habitual. Não havia história familiar de cardiopatias congênitas. A história pregressa da criança incluía epilepsia (crises tônico-clônicas), de início há um ano, controladas há seis meses pelo uso de fenobarbital.

Aos oito meses, em consulta pediátrica de rotina, foi auscultado um sopro sistólico, sendo encaminhado para avaliação com cardiologista. Devido a limitações estruturais do sistema público de saúde, somente aos três anos o paciente chegou ao nosso serviço para correção da cardiopatia. Nunca apresentou sintomas sugestivos de insuficiência cardíaca ou cianose.

À avaliação clínica, a criança encontrava-se assintomática e acianótica. Fácies atípico. A ausculta cardíaca revelava sopro sistólico 3+/6+, ejetivo, em bordo esternal direito médio, sem irradiação, com ausência de ruídos adventícios e uma segunda bulha normofonética. Sem relatos de mudança das características do som durante manobra de Valsalva. Pressão arterial de 110 x 70 mmHg, com boa perfusão. Encontrava-se eupnéico e sem visceromegalias e sem outras alterações relevantes em outros sistemas. A radiografia de tórax era normal e o eletrocardiograma revelava ritmo sinusal, sem sinais de hipertrofia ventricular.

Realizado ecocardiograma durante a internação, evidenciando situs solitus, concordância atrioventricular e ventrículo-arterial, septos interatrial e interventricular íntegros. Porém, chamava a atenção a presença de uma estrutura tipo paraquedas que abaulava para a via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE) durante a sístole (Figura 1), gerando turbilhonamento do fluxo, com estenose subvalvar importante (gradiente de pico de 77 mmHg), com leve aceleração do sangue na passagem pela valva aórtica (2,3 m/s). A valva mitral era normal morfologica e funcionalmente. A valva aórtica apresentava leve espessamento, sem insuficiência valvar ao fluxo em cores. Foi questionado possível cordoalha da valva mitral redundante gerando obstrução, sendo o paciente encaminhado para correção cirúrgica.

 

 

A cirurgia foi realizada sem intercorrências, com uso de circulação extracorpórea (CEC) conforme protocolo vigente no hospital. A abordagem foi por esternotomia mediana. A VSVE foi abordada por uma aortotomia em jota (oblíqua), sendo o achado cirúrgico uma estenose subaórtica por folheto mitral acessório que se fixava na face ventricular do folheto anterior da valva mitral e se estendia até a região septal anterior, onde se fixava por meio de cordoalhas espessadas e um músculo papilar acessório bem formado (Figura 2). Por fim, uma atriotomia também foi realizada, para melhor avaliação da valva mitral e seus folhetos. Como o FMA não contribuía para a manutenção da função valvar mitral, foi ressecado em bloco, juntamente com as cordoalhas e o músculo papilar (Figura 3). O tempo de CEC foi de 60 minutos, com pinçamento aórtico de 45 minutos. A evolução pós-operatória foi favorável, saindo extubado de sala, sem complicações no pós-operatório, permanecendo na unidade de tratamento intensivo por 48 horas, recebendo alta hospitalar no quinto dia. O ecocardiograma realizado no quarto dia do pós-operatório não evidenciava estenose residual na VSVE ou disfunções valvares.

 

 

 

 

DISCUSSÃO

O primeiro relato de TMA foi feito em 1842 e a primeira descrição de correção cirúrgica, em 1963 [4]. A origem embriológica do defeito vem da separação incompleta da valva mitral dos coxins endocárdicos [6,7]. TMA pode ser encontrado na face ventricular do folheto anterior da valva mitral, nas cordoalhas ou em músculos papilares acessórios.

Uma classificação dos tipos de TMA foi sugerida por Prifti et al. [2], com base na revisão de 90 casos descritos, dependendo da implantação e da morfologia do defeito. O tipo I (fixo) apresenta-se em duas formas: IA (nodular) e IB (membranoso). O tipo II (móvel) se divide em dois subtipos: IIA (pedunculados) e IIB (semelhantes a um folheto). Este último corresponde a 46% dos casos e recebe o nome de folheto mitral acessório, podendo ainda ser subdividido em folhetos com cordoalhas rudimentares e os com cordoalhas bem desenvolvidas.

No caso relatado neste artigo, o paciente é classificado como tipo II, subtipo B, com cordoalhas rudimentares.

Um FMA pode ou não gerar obstrução na VSVE. Em casos onde não ocorre a obstrução ou esta é leve, os pacientes geralmente se apresentam assintomáticos e o diagnóstico é acidental durante a realização de um ecocardiograma. Quando a obstrução é mais importante, pode-se auscultar o sopro típico da estenose subvalvar aórtica, de caráter ejetivo e audível no segundo ou terceiro espaço intercostal direito, podendo irradiar para os vasos do pescoço. Além do efeito obstrutivo de massa, a turbulência gerada no local da estenose leva a fibrose progressiva, aumento da obstrução secundária e insuficiência valvar. Os casos sintomáticos se manifestam geralmente na primeira década de vida e os sintomas são relacionados à obstrução, se apresentando como dispneia, síncope ou angina aos esforços [2]. Acidente vascular cerebral também é um sintoma relatado em alguns casos. Os sintomas tendem a aparecer quando a obstrução é mais importante, identificados no ecocardiograma por um gradiente de pressão elevado na VSVE (gradiente de pico > 50 mmHg) [4].

O ecocardiograma é considerado o exame de eleição para o diagnóstico das obstruções por TMA, permitindo a quantificação da estenose e sua repercussão hemodinâmica, a identificação do local da obstrução e ainda a classificação do TMA nos seus diferentes tipos [4,8]. A técnica transtorácica geralmente é suficiente para essa definição, mas o estudo transesofágico pode facilitar a análise das cordoalhas. No caso específico do folheto mitral acessório, obtém-se uma imagem típica em paraquedas que se abaula na VSVE durante a sístole [9]. O cateterismo acrescenta muito pouco aos achados, sendo indicado apenas para investigação de outros defeitos associados [2].

O manejo depende do grau da obstrução e da clínica do paciente. Nos casos assintomáticos e geralmente sem obstrução ou com obstrução leve, pode ser feito apenas acompanhamento clínico e de imagem.

A cirurgia é orientada nos casos sintomáticos, também naqueles com obstrução moderada a importante e naqueles casos com outras cardiopatias associadas que exijam abordagem. A insuficiência aórtica é outra indicação independentemente do grau de obstrução [3].

A identificação de um TMA durante a cirurgia pode ser difícil usando-se apenas a aortotomia, sendo a atriotomia esquerda de grande auxílio [10]. Numa revisão contemplando 68 pacientes operados foi verificada mortalidade de 9%. São fatores de pior resultado cirúrgico: a presença de outras cardiopatias complexas; falha na retirada total do tecido e cirurgias realizadas no período neonatal. As complicações mais comuns foram estenose residual leve em 13% dos casos, sendo que a reoperação por estenose residual grave foi necessária também em 13% dos casos. Complicações menos comuns foram insuficiência valvar mitral (10%) ou aórtica (7%) [2].

O caso relatado nos alerta para a importância do conhecimento prévio dessa patologia e suas implicações clínico-cirúrgicas, para que o diagnóstico ecocardiográfico possa ser feito com mais objetividade, facilitando a classificação do tipo de TMA encontrado, para adequado manejo prévio e indicação cirúrgica consistente.

REFERÊNCIAS

1. Rohliceck CV, del Pino SF, Hosking M, Miro J, Cote JM, Finley J. Natural history and surgical outcomes for isolated discrete subaortic stenosis in children. Heart. 1999;82(6):708-13. [MedLine]

2. Prifti E, Bonacchi M, Barlolozzi F, Frati G, Leacche M, Vanini V. Postoperative outcome in patients with accessory mitral valve tissue. Med Sci Monit. 2003;9(6):RA126-33. [MedLine]

3. Yuan SM, Shinfeld A, Mishaly D, Haizler R, Ghosh P, Raanani E. Acessory mitral valve tissue: a case report and an updated review of literature. J Card Surg. 2008;23(6):769-72. [MedLine]

4. Rovner A, Thanigaraj S, Perez JE. Accessory mitral valve in an adult population: the role of echocardiography in diagnosis and management. J Am Soc Echocardiogr. 2005;18(5):494-8. [MedLine]

5. Panduranga P, Eapen T, Al-Maskari S, Al-Farqani A. Accessory mitral valve tissue causing severe left ventricular outflow tract obstruction in a post-Senning patient with transposition of the great arteries. Heart Int. 2011;6(1):18-20.

6. Chevers N. Observations on diseases of the orifice and valves of the aorta. Vol. 7. London: Guy's Hospital Reports;1842. p.387-452.

7. MacLean LD, Culligan JA, Kane DJ. Subaortic stenosis do to accessory tissue on the mitral valve. J Thorac Cardiovasc Surg. 1963;45:382-7.

8. Souza AM, Silva CE, Ortiz J, Matsumoto AY. Accessory mitral valve leaflet echocardiographic diagnosis. Arq Bras Cardiol. 1990;55(2):121-4. [MedLine]

9. Rivera IR, Silva MAM, Fernandes JMG, Cavalcanti RC. Accessory mitral valve leaflet. Rev Bras Ecocardiog. 2008;21:49-51.

10. Prifti E, Frati G, Bonacchi M, Vanini V, Chauvaud S. Accessory mitral valve tissue causing left ventricular outflow tract obstruction: case reports and literature review. J Heart Valve Dis. 2001;10(6):774-8. [MedLine]

Article receive on quarta-feira, 2 de maio de 2012

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