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EDITORIAL

Cirurgia cardíaca, os Arquivos Brasileiros de Cardiologia e a Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular

Paulo Roberto Barbosa Evora

DOI: 10.5935/1678-9741.20120088

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

ABC: Arquivos Brasileiros de Cardiologia

AVC: Acidente vascular cerebral

CEC: Circulação extracorpórea

CIA: Comunicação interatrial

CIV: Comunicação interventricular

EHJ: European Heart Journal

JACC: Journal of the American College of Cardiology

RBCCV: Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular

No último Congresso Brasileiro de Cardiologia, houve uma mesa redonda dedicada aos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC). A interessante iniciativa do Editor, o Prof. Luiz Felipe Pinho Moreira, foi abordar as variadas linhas de artigos publicados no triênio 2010-2013 na visão de seus coeditores. A ideia foi que as apresentações dessem origem a editoriais que, em estilo analítico, fornecessem ao leitor uma análise setorial das coauditorias. No caso da nossa apresentação, adotou-se uma estratégia embasada em três tópicos: 1) Estabelecer um paralelo editorial entre os ABC e duas consagradas revistas clínicas de cardiologia; 2) Analisar o conteúdo com base nos artigos publicados; e, 3) Buscar possíveis evidências de impacto da criação da Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (RBCCV) sobre a publicação de artigos de cirurgia cardíaca nos ABC.

 

Paralelo editorial entre os ABC e duas consagradas revistas clínicas de cardiologia

As revistas escolhidas para comparações editoriais foram o Journal of the American College of Cardiology (JACC) e o European Heart Journal (EHJ). A fonte consultada foi a MEDLINE. No triênio em questão, foram publicados um expressivo número de trabalhos: 2286 (JACC), 3299 (EHJ) e 689 (ABC). Desse total, 473/20,7% (JACC), 569/29,6 (EHJ) e 79/11,6 (ABC) são artigos relacionados à cirurgia cardíaca e entre esses foram separados os artigos de acordo com os três grupos de cardiopatias cirúrgicas mais frequentes: coronariopatias, valvopatias e cardiopatias congênitas (Figura 1). Assim, os números apurados foram: 1) Coronariopatias: 140/29% (JACC), 126/29,6% (EHJ) e 12/15,2% (ABC); 2) Valvopatias: 93/19,7% (JACC), 93/32,2% (EHJ) e 7/8,9% (ABC), e; 3) Cardiopatias congênitas:11/2,33% (JACC), 18/13,6% (EHJ) e 6/7,6% (ABC).

 

 

Análise de conteúdo embasada nos artigos publicados nos ABC.

Para essa análise adotou-se uma sistematização semelhante embasada nas três cardiopatias cirúrgicas mais frequentes e o transplante cardíaco. Mas, independente de qualquer estratégia editorial, com grande margem de certeza, a publicação de maior impacto foi a publicação analítica da evolução da cirurgia cardiovascular no Instituto do Coração embasada na impressionante experiência institucional e 71.305 operações realizadas entre 1984 e 2007, considerando-se a tendência dos principais procedimentos e as taxas de mortalidade. O estudo apresenta os seguintes resultados: 1) O número de cirurgias de revascularização miocárdica, que na década de 1980 tinha uma média de 856/ano, aumentou para cerca de 1.106/ano; 2) Os procedimentos das valvas cardíacas passaram de 400 para 597 operações/ano, com um crescimento de 36,7% em relação à década de 1990; e 3) As correções das cardiopatias congênitas também tiveram um aumento expressivo de 50,8% em relação à última década. A mortalidade global média, que no início era de 7,5%, diminuiu para 7%, sendo de 4,9% entre os procedimentos eletivos [1]. Esse artigo mereceu um brilhante editorial, que ressalta os números apresentados, mas acima de tudo estabelece um paralelo com a evolução histórica da cirurgia cardíaca brasileira. O título do editorial fala por si só: "Evolução da Cirurgia Cardiovascular. A Saga Brasileira. Uma História de Trabalho, Pioneirismo e Sucesso" [2].

 

Cirurgia de revascularização do miocárdio

Em relação à cirurgia de revascularização do miocárdio, dois aspectos foram abordados: a cirurgia em octogenários e a prospecção de resultados entre as cirurgias com e sem circulação extracorpórea (CEC).

Foram estudados 140 casos consecutivos entre janeiro de 2002 e dezembro de 2007. Os pacientes tinham, em média, 82,5 ± 2,2 anos (80-89), e 55,7% eram do sexo masculino. Na amostra, 72,9% eram hipertensos, 26,4% apresentavam diabetes, 65,7% tinham lesão grave em três ou mais vasos e 28,6% em tronco da artéria coronária esquerda. Cirurgia associada esteve presente em 35,7% dos pacientes, sendo a valvar aórtica em 26,4% e a mitral em 5,6%. Esses resultados levaram à conclusão de que a cirurgia de revascularização em octogenários está relacionada a morbimortalidade maior do que nos pacientes mais jovens, o que, entretanto, não impede a intervenção se houver indicação pela condição clínica [3].

Uma metanálise dos estudos randomizados disponíveis demonstrou que a revascularização miocárdica sem CEC está associada à menor taxa de mortalidade e ao menor risco de ocorrência de acidente vascular cerebral (AVC). Contudo, essa aparente superioridade clínica em comparação à CEC na cirurgia de revascularização miocárdica ainda carece de demonstração em contextos clínicos particulares. Ambas as técnicas estão em evolução e apresentam vantagens e desvantagens específicas em determinados subgrupos de doentes em que os riscos e os benefícios de ambas as abordagens precisam ser considerados, de forma que a escolha da estratégia para o doente permita maximizar o benefício em longo prazo e minimizar os riscos em curto prazo [4].

Como a revisão publicada no ABC foi bastante cautelosa, optamos pela inclusão dos conceitos obtidos de metanálise recente publicada pela Cochrane Database Systematic Review. Essa revisão sistemática não observou qualquer benefício significante da cirurgia de revascularização sem CEC em comparação à cirurgia com CEC, considerando-se a mortalidade operatória. Em contraste, observou-se melhor sobrevida no grupo submetido a cirurgia com CEC. Baseado nessa evidência, a cirurgia de revascularização com CEC deve ser o padrão adotado. A cirurgia sem CEC deve ser utilizada quando houver contraindicação para a canulação da aorta [5].

 

Valvopatias cardíacas

Um texto da minha autoria ilustra um ponto de vista sobre a valvulopatia carcinoide como um enigma e um desafio da moderna cardiologia. Por que enigma e desafio? Alguns dados ainda enigmáticos seriam: 1) o desconhecido papel da serotonina na doença da valvulopatia; 2) contra a hipótese da presença de comunicação interatrial, como condição para as valvulopatias esquerdas, existem casos descritos de valvulopatias esquerdas sem a presença dessa comunicação; 3) a história natural da doença ainda é imprecisa e a doença poderia ser subestimada. Alguns destaques "desafiantes" seriam: 1) o diagnóstico precoce embasado em exame de imagem e biomarcadores mais precisos, 2) qual é o momento cirúrgico ideal? 3) embora haja preferência pelas biopróteses, surgiriam possíveis tratamentos que invertessem o binômio duração da prótese/sobrevida do paciente? 4) tem sentido associarem-se plásticas a trocas valvulares? Ressalta-se que o número crescente de publicações sobre a doença carcinoide cardíaca pode lhe dar característica de doença emergente, merecendo maior atenção de pesquisadores básicos, clínicos e cirurgiões [6].

 

Cardiopatias congênitas

Um trabalho teve por objetivo avaliar a viabilidade e os efeitos da correção anatômica da anomalia de Ebstein com a técnica do cone na evolução clínica dos pacientes, na função da valva tricúspide e na morfologia do ventrículo direito. Trata-se de uma técnica cirúrgica original, proposta pelos autores em 1989, denominada reconstrução cônica da valva tricúspide, visando à sua reconstrução à semelhança da valva normal. Foram comparados os dados clínicos, ecocardiográficos e radiológicos de 52 pacientes consecutivos, com idade média de 18,5 ± 13,8 anos, submetidos à técnica do cone, obtidos nos períodos pré-operatório, pós-operatório imediato e em longo prazo. A técnica do cone apresentou baixa mortalidade hospitalar, corrigindo a insuficiência tricúspide de maneira eficaz e duradoura, com a restauração da área funcional do ventrículo direito, permitindo o remodelamento reverso do coração e a melhora clínica na maioria dos pacientes em longo prazo [7]. A relevância do assunto motivou um editorial que ressalta 3 pontos importantes: 1) O advento da técnica do cone, como é denominada, se torna de imediato um avanço técnico de grande magnitude e de alento no manejo geral da anomalia de Ebstein; 2) A dificuldade dessa técnica do cone está expressa ainda na sua não reprodutibilidade e execução em outros centros médicos, assim, acredita-se que daqui em diante ela possa ser mais executada, estimulada pelos bons resultados demonstrados, já em período suficiente de evolução em longo prazo, e; 3) Um aspecto deveria ser mais bem enfatizado, de que a técnica poderia ser executada em pacientes com menor idade do que a atualmente realizada (18,5 ± 13,8 anos), no sentido de se poder prevenir aspectos evolutivos adversos e desfavoráveis, como a acentuada dilatação do ventrículo direito e consequente disfunção ventricular [8].

Um estudo digno de menção se propôs a identificar os fatores de risco associados à disfunção e à falência do homoenxerto pulmonar em crianças submetidas à ampliação da via de saída do ventrículo direito. A amostra final de 75 pacientes com idade mediana na cirurgia de 22 meses, variando de 1 a 157 meses, apresentou 13 (17%) pacientes que desenvolveram disfunção do homoenxerto, caracterizado por estenose ou insuficiência pulmonar grave. Os autores concluíram que o homoenxerto pulmonar de tamanho menor do que 21 mm e a valva pulmonar inadequada para idade e peso do paciente são fatores determinantes para disfunção da prótese [9].

Ainda no campo das cardiopatias congênitas, merece destaque o crescente interesse individualizado sobre as cardiopatias congênitas em adultos e, quem deve ser responsabilizado por operá-las: o cirurgião pediátrico ou o cirurgião de adultos? Dois artigos foram publicados sobre o assunto. Um deles teve o objetivo de descrever o perfil de pacientes operados com idade superior a 16 anos e analisar os fatores de risco preditivos de mortalidade hospitalar. Mil quinhentos e vinte pacientes (idade média 27 ± 13 anos) foram operados entre janeiro de 1986 e dezembro de 2010. Foram realizadas análise descritiva do perfil epidemiológico da população estudada e análise dos fatores de risco para mortalidade hospitalar, considerando escore de complexidade, ano em que a cirurgia foi realizada, procedimento realizado pelo cirurgião pediátrico ou não e presença de reoperação. Observou-se um número crescente de pacientes com idade superior a 16 anos e que, apesar do grande número de casos simples, os mais complexos foram encaminhados para os cirurgiões pediátricos, que apresentaram menor mortalidade, em especial nos anos mais recentes [10].

O outro trabalho teve por objetivo descrever o perfil clínico básico de adultos com cardiopatias congênitas atendidas ambulatorialmente em centro terciário. Na casuística, predominaram pacientes tratados invasivamente, residentes na região e a maioria com idade abaixo de 40 anos. Defeitos como comunicação interatrial (CIA), comunicação interventricular (CIV) e estenose pulmonar predominaram no grupo não tratado, ao passo que, nos tratados, a maioria tinha sido submetida à correção de CIA, tetralogia de Fallot, coarctação da aorta e CIV. Hipertensão arterial e arritmias foram relevantes em ambos os grupos, sendo também registrada grande diversidade de outras comorbidades [11].

 

Transplante cardíaco

Um estudo objetivou comparar os efeitos do sildenafil e nitropussiato de sódio sobre variáveis hemodinâmicas, neurohormonais e ecocardiográficas durante teste de reatividade pulmonar. Sildenafil e nitroprussiato são vasodilatadores que reduzem, de forma significativa, a hipertensão pulmonar e a geometria cardíaca, além de melhorar a função biventricular. O nitroprussiato, ao contrário do sildenafil, esteve associado a hipotensão arterial sistêmica e piora da saturação venosa de oxigênio [12].

Uma bem elaborada metanálise conclui que os transplantes cardíacos ortotópico bicaval e total são melhores, em termos de prognóstico, que o biatrial. Assim sendo, a indicação da técnica biatrial para transplante deve ser a exceção e não a regra [13].

 

Impacto da criação da RBCCV sobre a publicação de artigos de cirurgia cardíaca nos ABC

Após as arbitrárias evidências acima descritas surgiu a curiosidade em saber se a publicação da RBCCV causou algum impacto no perfil de publicações em assuntos de cirurgia cardíaca nos ABC. Consultando o MEDLINE no triênio 1983-1985 (pré RBCCV), os seguintes números foram apurados: de um total de 615 trabalhos, 58 (9,43%) eram a respeito da cirurgia cardíaca. Entre esses, 9 (13,9%) eram relativos a cirurgias coronarianas, 3 (4,9%) a valvopatias, e não foram publicados artigos sobre cardiopatias congênitas. Se não houver um grosseiro viés, a Figura 2 mostra-se favorável aos ABC em relação às publicações relacionadas a valvopatias e cardiopatias congênitas. Ressaltando-se que apresentações de relatos de casos não foram consideradas, é curioso notar as quase inexistentes publicações de trabalhos sobre cardiopatias congênitas na RBCCV.

 

 

Como comentário final, os trabalhos publicados nos ABC podem ser considerados compatíveis com a orientação de difundir informações que são de interesse mútuo entre clínicos e cirurgiões.

REFERÊNCIAS

1. Lisboa LA, Moreira LF, Mejia OV, Dallan LA, Pomerantzeff PM, Costa R, et al. Evolution of cardiovascular surgery at the Instituto do Coração: analysis of 71,305 surgeries. Arq Bras Cardiol. 2010;94(2):162-8.

2. Braile DM, Gomes WJ. Evolution of cardiovascular surgery: the Brazilian saga. A history of work, pioneering experience and success. Arq Bras Cardiol. 2010;94(2):141-2.

3. Pivatto Júnior F, Kalil RA, Costa AR, Pereira EM, Santos EZ, Valle FH, et al. Morbimortality in octogenarian patients submitted to coronary artery bypass graft surgery. Arq Bras Cardiol. 2010;95(1):41-6. [MedLine]

4. Godinho AS, Alves AS, Pereira AJ, Pereira TS. On-pump versus off-pump coronary-artery bypass surgery: a meta-analysis. Arq Bras Cardiol. 2012;98(1):87-94. [MedLine]

5. Møller CH, Penninga L, Wetterslev J, Steinbrüchel DA, Gluud C. Off-pump versus on-pump coronary artery bypass grafting for ischaemic heart disease. Cochrane Database Syst Rev. 2012;3:CD007224. [MedLine]

6. Evora PR, Bassetto S, Augusto VS, Vicente WV. Carcinoid heart valve disease: still a puzzle and a challenge. Arq Bras Cardiol. 2011;97(5):e111-2. [MedLine]

7. Silva JP, Silva LF, Moreira LF, Lopez LM, Franchi SM, Lianza AC, et al. Cone reconstruction in Ebstein's anomaly repair: early and long-term results. Arq Bras Cardiol. 2011;97(3):199-208. [MedLine]

8. Atik E. Ebstein's anomaly. Arq Bras Cardiol. 2011;97(5):363-4. [MedLine]

9. Lenzi AW, Olandoski M, Ferreira WS, Sallum FS, Miyague NI. Dysfunction of the pulmonary homograft used in the reconstruction of the right ventricle exit tract. Arq Bras Cardiol. 2011;96(1):2-7. [MedLine]

10. Caneo LF, Jatene MB, Riso AA, Tanamati C, Penha J, Moreira LF, et al. Evaluation of surgical treatment of congenital heart disease in patients aged above 16 years. Arq Bras Cardiol. 2012;98(5):390-7. [MedLine]

11. Amaral F, Manso PH, Granzotti JA, Vicente WV, Schmidt A. Congenital heart disease in adults: outpatient clinic profile at the Hospital das Clínicas of Ribeirão Preto. Arq Bras Cardiol. 2010;94(6):707-13. [MedLine]

12. Freitas Jr AF, Bacal F, Oliveira Júnior JD, Fiorelli AI, Santos RH, Moreira LF, et al. Sildenafil vs. sodium before nitroprusside for the pulmonary hypertension reversibility test before cardiac transplantation. Arq Bras Cardiol. 2012;99(3):848-56. [MedLine]

13. Locali RF, Matsuoka PK, Cherbo T, Gabriel EA, Buffolo E. Should biatrial heart transplantation still be performed? A meta-analysis. Arq Bras Cardiol. 2010;94(6):829-40. [MedLine]

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