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ARTIGO ORIGINAL

Comparação da ocorrência de complicações tromboembólicas e hemorrágicas em pacientes portadores de prótese valvares cardíacas mecânicas com um e dois folhetos na posição mitral

Nelson Leonardo Kerdahi Leite de CamposI

DOI: 10.5935/1678-9741.20140012

ABREVIAÇÕES E ACRÔNIMOS

AVCI: Acidentes vasculares cerebrais isquêmicos

Bi: Prótese Bifolheto

EP: Erro padrão do intervalo

LHE: Pacientes livres de eventos hemorrágicos e potencialmente hemorrágicos

LHM: Pacientes livres de eventos hemorrágicos maiores

LHm: Pacientes livres de eventos hemorrágicos menores

LIIC95%: Limite inferior do Intervalo de Confiança 95%

LQE: Pacientes livres de qualquer tipo de evento

LSIC95%: Limite Superior do Intervalo de Confiança 95%

LT: Pacientes livres de eventos tromboembólicos

LTM: Pacientes livres de eventos tromboembólicos maiores

LTm: Pacientes livres de eventos tromboembólicos menores

Mo: Prótese Monofolheto

PH: Pacientes livres de eventos potencialmente hemorrágicos

RNI: Razão de Normatização Internacional

INTRODUÇÃO

O implante de prótese valvar cardíaca mecânica requer a necessidade do uso contínuo de anticoagulantes orais por seu potencial de trombogenicidade e tromboembolismo [1].

Uma abordagem individualizada no acompanhamento do paciente portador de prótese valvar cardíaca mecânica recebendo anticoagulante oral é essencial para que se obtenham resultados satisfatórios no controle da anticoagulação oral. Além do tipo de prótese utilizada, também são importantes os riscos próprios de cada paciente para tromboembolismo, sangramento, e a posição anatômica da prótese [2].

As próteses valvares cardíacas mecânicas foram produzidas desde a década de 1950 sendo constituídas primeiramente de metal e depois de liga de carbono, sendo classificadas como próteses tipo gaiola-bola, disco único (ou monofolheto ou unifolheto) e de duplo disco (ou bifolheto). As de maior potencial trombogênico são as gaiola-bola e as de menor trombogenicidade são as de bifolheto, ficando as próteses valvares unifolheto em posição intermediária entre as duas anteriores. No entanto, em pacientes com anticoagulação adequada, a incidência de trombose é semelhante para os três tipos de próteses mecânicas [3].

Para Lavitola et al. [4] em certas situações, nos pacientes com prótese biológica mitral na presença de fibrilação atrial, onde está comumente indicada profilaxia com o uso de anticoagulante oral, poderia ser considerada a substituição do anticoagulante por ácido acetilsalicílico. No entanto para próteses mecânicas, a administração contínua de antivitamina K oral seria sempre indispensável, com ou sem fibrilação atrial concomitante.

Bussey [5] afirma que muitos estudos não consideram alguns fatores que influenciam a trombogenicidade, entre eles, a estrutura (tipo) de prótese.

Atualmente, o emprego de próteses valvares cardíacas mecânicas se faz quase que em sua totalidade com próteses de duplo folheto. As próteses monofolheto foram saindo de uso na cirurgia cardíaca valvar por problemas de desempenho e outras complicações em alguns modelos mais do que em outros. Em 1986, por exemplo, a prótese Bjork-Shiley convexo-côncava parou de ser utilizada devido aos relatos de fratura no anel, resultando em deslocamento e embolização do disco [3].

Há muitos anos, a prótese mecânica monofolheto não tem sido empregada em nosso serviço de cirurgia cardiovascular, o que fez diminuir paulatinamente o número de pacientes portadores deste tipo de prótese em relação aos com próteses bifolheto. No entanto, boa parte dos pacientes acompanhados ambulatorialmente para controle de anticoagulação é portadora de prótese com disco único e continuará com esta conduta permanentemente.

Vários estudos avaliaram ocorrências de complicações tromboembólicas e hemorrágicas em portadores de próteses valvares cardíacas mecânicas monofolheto [6-9] e duplo folheto duplo [10,11], no entanto, sem comparar os dois tipos de prótese.

Realizamos, então, um estudo comparando especialmente os pacientes portadores de próteses mono e bifolhetos na posição mitral, haja vista que não possuímos pacientes gaiola-bola nesta posição. Questionamos se uma prótese de modelo diferente, supostamente desenvolvida com tecnologia mais avançada poderia, de fato, causar menos complicações tromboembólicas e hemorrágicas em relação à outra de modelo mais antigo.

 

MÉTODOS

Foram obtidos os dados ambulatoriais e registros hospitalares de pacientes portadores de próteses valvares cardíacas mecânicas na posição mitral, acompanhados no Ambulatório de Controle de Anticoagulação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP. Devido à entrada em desuso, em nosso serviço, das próteses mecânicas monofolheto (ou unifolheto ou disco único) no ano 1995, determinou-se o intervalo entre 1 de janeiro de 1993 a 31 de dezembro de 2002 (dez anos) por tratar-se de um período no qual o número de pacientes portadores dos dois tipos de próteses, com consultas regulares no ambulatório, permitia uma melhor comparação dos dados. Após o período citado, somente entraram em acompanhamento pacientes portadores de próteses de duplo folheto (ou bifolheto), o que limitou a entrada de novos pacientes e a ampliação do período de observação. Todos os dados foram colhidos e organizados pelo mesmo pesquisador.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual Paulista - UNESP, com o registro OF605/2006 CEP. Os pacientes assinaram o termo de consentimento de utilização de seus registros nos prontuários e fichas de atendimento antes do inicio da coleta de dados, como exigido pelo Comitê de Ética e Pesquisa.

Pacientes

Número de Pacientes

Foram incluídos, no estudo, 117 pacientes portadores de prótese na posição mitral, sendo 48 com próteses monofolheto e 69 de bifolheto (Quadro 1).

 

Durante o período estudado, os pacientes fizeram uso de dois tipos de anticoagulantes: fenprocumona e warfarina.

Idade e Sexo

Como o estudo fez acompanhamento dos pacientes em um período de tempo, foi considerada de referência para cada paciente, sua idade na data da cirurgia de implante da prótese. A média de idade dos pacientes foi de 40,97 anos.

Participaram 84 mulheres e 33 homens. Média de idade para mulheres de 41,12 anos e para os homens de 40,58 anos.

Pacientes excluídos do estudo

Foram excluídos deste trabalho os pacientes nos quais não foi possível a obtenção de dados suficientes ou confiáveis para o estudo.

O ambulatório de controle de anticoagulação

Durante as consultas, são reforçadas as orientações sobre cuidados e importância da anticoagulação, procurando não deixar dúvidas na compreensão da dose de anticoagulante a ser utilizada.

Os pacientes são alertados sobre sinais de sangramento, e caso isso ocorra, deverão procurar o Pronto Socorro do Hospital das Clínicas imediatamente.

Pacientes com queixas ou sinais importantes relacionados à anticoagulação, bem como RNI muito aumentadas (mesmo sem sangramento), são internados na enfermaria de Cirurgia Cardiovascular. Quando não é necessária internação, porém há queixas de pequenos sangramentos ou outras alterações menos relevantes, é marcado retorno para mais breve, conforme a necessidade do caso.

Quando a RNI do paciente está bem controlada, marca-se retorno mensal. Desvios da RNI exigem retornos em espaços menores de tempo. Em geral, os pacientes que tiverem cerca de quatro retornos com RNI satisfatória (quatro meses), passarão a ter retornos a cada dois meses. Os pacientes que, por algum motivo, vierem em busca de atendimento são atendidos, mesmo que não estejam agendados para aquele dia.

Consideraram-se os intervalos da RNI desejados em cada consulta, para os portadores de próteses valvares na posição mitral a RNI 2,50-3,50.

Grupos

Os portadores de prótese valvar mecânica na posição mitral foram divididos em dois grupos: 1) Mono: portadores de próteses de monofolheto (ou folheto único), e 2) Bi: portadores de próteses bifolheto ou com dois folhetos (ou folheto duplo).

Complicações

Tipo de complicações

As complicações foram divididas em tromboembólicas (maior e menor) e hemorrágicas (maior e menor).

Complicação Tromboembólica: Todo tipo de complicação em que os registros do paciente permitiram constatar a ocorrência de episódio tromboembólico.

Complicação Tromboembólica maior: episódios graves, que necessitaram tratamento com internação hospitalar, podendo ou não ter deixado sequelas. Tipos de ocorrência: acidente vascular cerebral isquêmico, oclusão arterial aguda em membros, trombose de prótese valvar cardíaca.

Complicação Tromboembólica menor: episódios de pouca gravidade, que permitiram tratamento e acompanhamento ambulatorial. Tipo de ocorrência: ataque isquêmico cerebral transitório.

Complicação Hemorrágica: Todo tipo de complicação em que os registros do paciente permitiram constatar a ocorrência de episódio hemorrágico.

Complicação Hemorrágica maior: episódios graves que necessitaram tratamento com internação hospitalar, podendo ou não ter deixado sequelas. Tipos de ocorrência: hematúria intensa, sangramento muscular em MMII (hematomas), sangramento vaginal (uterino), hemoperitônio, hemopericárdio, hemorragia digestiva alta, acidente vascular cerebral hemorrágico, enterorragia, hematoma retroperitonial e sangramento grave em língua.

Complicação Hemorrágica menor: episódios de pouca gravidade que, geralmente, permitiram tratamento e acompanhamento ambulatorial. Tipos de ocorrência: manchas roxas na pele, epistaxe, hematúria, sangramento vaginal, sangramento discreto nas fezes, sangramento ocular discreto, hemoptise discreta, sangramento gengival, hematoma em incisão cirúrgica pós-marca-passo, sangramento gástrico discreto, consultas ambulatórias em que foram constatados RNI igual ou maior a 7,0, sem sangramento efetivo.

Complicações Potencialmente Hemorrágicas As consultas ambulatórias, em que foram constatados RNI igual ou maior a 7,0, foram consideradas como episódio potencialmente hemorrágico, embora não tenha ocorrido sangramento efetivo.

Complicações - Cálculos e Curvas Atuariais.

No estudo da ocorrência de complicações, foram usados, também, cálculos e curvas atuariais, que demonstraram o porcentual de pacientes livres de eventos durantes os anos de estudo. Para auxílio nos cálculos atuariais, empregou-se o programa Cálculos Estatísticos For Windows V. 1.8, desenvolvido por Dr. Domingo Marcolino Braile e Dr. Moacir Fernandes de Godoy e implementado em Power Builder 6.5 por M. Sc. Djalma Domingos da Silva. Para construção das Curvas Atuariais, foi utilizado o programa Microsoft Excel.

Divisão dos pacientes segundo a ocorrência de complicações, para o estudo atuarial

Para o estudo atuarial, os pacientes foram divididos segundo a ocorrência de complicações da seguinte forma:

Pacientes livres de qualquer evento: livres de eventos tromboembólicos hemorrágicos e potencialmente hemorrágicos.

Pacientes livres de eventos tromboembólicos: livres de eventos com complicações tromboembólicas maiores ou menores.

Pacientes livres de eventos tromboembólicos maiores: livres de eventos com complicações tromboembólicas maiores.

Pacientes livres de eventos tromboembólicos menores: livres de eventos com complicações tromboembólicas menores.

Pacientes livres de eventos hemorrágicos ou potencialmente hemorrágicos: livres de eventos com complicações hemorrágicas maiores ou menores.

Ressalta-se que os pacientes, os quais apesar de não se ter constatado sangramento efetivo, a ocorrência de episódio com RNI igual ou maior a 7,0 em consulta do Ambulatório de Controle de Anticoagulação foi considerada como complicação. No estudo atuarial, devido ao uso dos termos "livres de eventos", preferiu-se, aqui, denominar estes episódios como: "episódios ou eventos potencialmente hemorrágicos".

Pacientes livres de eventos hemorrágicos maiores: livres de eventos com complicações hemorrágicas maiores.

Pacientes livres de eventos hemorrágicos menores ou potencialmente hemorrágicos: considerando-se aqui o aumento de TP igual ou maior a 7,0 uma complicação menor, comparada aos sangramentos importantes, agruparam-se então os pacientes livres desse tipo de evento aos livres de eventos hemorrágicos menores.

Pacientes livres de eventos hemorrágicos menores: pacientes que, efetivamente, não apresentaram eventos hemorrágicos menores.

Cálculos atuariais

Para os estudos atuariais, foram feitos os seguintes cálculos, apresentados em tabelas, juntamente às curvas: Porcentagem de livres do evento (PLE%); Erro padrão do intervalo (EP%) Limite inferior do Intervalo de confiança 95% (LIIC95%) e Limite superior do Intervalo de confiança 95% (LSIC95%).

Complicações - Taxas linearizadas de ocorrência de eventos - cálculos de número de eventos pacientes -ano

No cálculo de complicações paciente-ano, consideramos o número de eventos ocorridos. Destacamos que um mesmo paciente pode ter contribuído para mais de um evento. Cada paciente contribuiu com diferentes intervalos de tempo no estudo. A soma de anos de acompanhamento de cada paciente foi 505,77 anos, com 129 eventos ocorridos no total.

Foram calculadas as Taxas Linearizadas de Ocorrência de Eventos em:

Eventos tromboembólicos
Eventos tromboembólicos maiores
Eventos tromboembólicos menores
Eventos hemorrágicos ou potencialmente hemorrágicos
Eventos hemorrágicos maiores
Eventos hemorrágicos menores ou potencialmente hemorrágicos
Eventos hemorrágicos menores
Eventos potencialmente hemorrágicos

Para comparar próteses mono e bifolhetos para número de eventos por 100 pacientes/ano, foi ajustado um modelo linear generalizado com distribuição de Poisson, considerando os efeitos de tromboembolismo hemorragia com suas subdivisões, segundo o teste de comparação múltipla de Wald.

Observações - As definições sobre os eventos são as mesmas das encontradas no que se refere aos Cálculos e Curvas atuariais.

- Para os Cálculos de Eventos Paciente-Ano, incluiu-se mais uma subdivisão das complicações hemorrágicas: "Eventos potencialmente hemorrágicos" isoladamente, isto é, consultas ambulatórias em que foram constatados RNI igual ou maior a 7,0, sem sangramento efetivo.

 

RESULTADOS

A Figura 1 mostra as curvas e cálculos atuariais para os pacientes livres de qualquer tipo de evento permitindo a comparação entre os portadores de próteses de monofolheto e bifolheto.

 

Nas Figuras 2, 3 e 4 encontramos as curvas e cálculos atuarias para os pacientes livres de qualquer evento tromboembólico, eventos tromboembólicas maiores e menores, respectivamente para os portadores próteses de monofolheto e de bifolheto.

 

 

 

Os resultados com o estudo atuarial com as curvas e cálculos atuariais para os eventos hemorrágicos e potencialmente hemorrágicos com suas subdivisões em eventos hemorrágicos maiores, menores ou potencialmente hemorrágicos e menores, para os dois tipos de próteses estudados estão apresentados nas Figuras 5, 6, 7 e 8.

 

 

 

 

Na Tabela 1, apresentamos as taxas linearizadas de ocorrência de eventos para as complicações e suas subdivisões em número de eventos por 100 pacientes/ano para os portadores de prótese monofolheto e próteses bifolheto.

 

DISCUSSÃO

Segundo "2008 focused update incorpored into the ACC/AHA 2006 - Guidelines for the manegament of Patientes with valvar heart disease" [1] nos pacientes com próteses mecânicas na posição mitral está recomendado maior nível de anticoagulação que os pacientes com próteses na posição aórtica baseado no maior risco de trombogenicidade nesta localização, sendo que em qualquer tipo de prótese valvar mecânica mitral deve se manter o TP (RNI) entre 2,5 e 3,5; conduta esta adotada em nosso ambulatório.

Viemos estudando os resultados da anticoagulação oral no Ambulatório de Controle de Anticoagulação Oral da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP por um período de 10 anos sobre vários aspectos, entre os quais, constatamos que somente cerca de um terço dos pacientes permanecem com o Tempo de Protrombina (TP) e Razão de Normatização Internacional (RNI) dentro do intervalo desejado em pelo menos metade de suas consultas, e que, estes pacientes estiveram mais livres de ocorrência de complicações tromboembólicas e hemorrágicas, com menor número desses eventos em relação aos outros [12].

A ocorrência de oscilações temporárias nos níveis de anticoagulação profilática nos portadores de prótese valvar cardíaca mecânica leva ao maior risco de embolia, pois o trombo se forma mais facilmente. Quando ocorrem quedas de anticoagulante a níveis subterapêuticos, seguido de aumentos para os níveis desejados, o trombo se torna menos aderente à superfície da valva, podendo embolizar mais facilmente [13].

A anticoagulação oral em pacientes portadores de próteses valvares cardíacas mecânicas visando à profilaxia antitrombótica exige controle diferenciado do tempo de protrombina (TP-RNI ou Razão de Normatização Internacional) de acordo com a posição da prótese. Na posição aórtica, o fluxo pela valva é comparativamente mais rápido e causa maior estresse quando comparado à posição mitral, principalmente nos casos de estenose mitral com aumento de átrio esquerdo pré-existente ao implante. No caso de fluxo com aceleração acentuada do sangue (posição aórtica), as plaquetas são ativadas sendo que as membranas dos eritrócitos são lesadas, ocorrendo à liberação de ADP com intensificação da ativação e agregação plaquetária, sendo de papel secundário a participação dos fatores de coagulação no potencial trombótico. Nas próteses em posição mitral, onde o fluxo pela valva é comparativamente lento ocorrem maior estase e contato prolongado dos fatores de coagulação com a superfície da prótese, neste caso com menor importância à contribuição das plaquetas em relação os fatores de coagulação no potencial trombogênico [14].

Nas próteses valvares cardíacas, os trombos, em sua maioria, são formados no anel de sutura, no local de maior crescimento tecidual, em direção à abertura valvar, podendo resultar em embolia. Em próteses de gaiola, o trombo poderá se formar também no ápex da gaiola. Com o repetido impacto da bola, pedaços do trombo podem se soltar, causando episódios embólicos de repetição, sendo que, neste tipo de prótese, a trombose com imobilização da bola é menos comum. Nas próteses de disco único e de duplo disco, entretanto, o trombo pode se estender para os locais de suporte e articulações, causando o seu travamento, sendo a embolia menos frequente [15-17].

Na literatura, as avaliações da ocorrência de complicações por anticoagulação oral em portadores de próteses valvares cardíacas, são, em sua maioria, retrospectivas devido à questão ética e ao tempo de observância para ocorrência de complicações. No caso do envolvimento de próteses de disco único, muitas vezes, foram feitas coletas de dados referentes a períodos bem anteriores, isto é, períodos mais próximos à época de implante das próteses, como é o caso do estudo de Florez et al. [6] com próteses Omnicarbon (monofolheto) nas posições aórtica, mitral e mitro-aórtica, entre abril de 1985 e maio de 1995 (10 anos).

De forma semelhante, em nosso trabalho tivemos que optar por um período no qual havia maior disponibilidade de pacientes portadores de próteses monofolheto com controles regulares da anticoagulação, o que permitiu melhor comparação com as próteses bifolheto (de 1 de janeiro de 1993 a 31 de dezembro de 2002), época esta que corresponde mais proximamente aos implantes rotineiros também das próteses unifolheto. Ponderamos que a importância desta comparação entre os dois tipos de próteses reside principalmente no fato de que muitos pacientes portadores das próteses de disco único continuarem e continuarão a frequentar nosso ambulatório.

Neste estudo, quando comparamos as curvas atuariais das próteses mitrais mecânicas mono e bifolhetos (Figura 1) observamos que os portadores de próteses monofolheto (LQEMo) estiveram mais livres de qualquer tipo de evento com o passar do tempo, que os portadores de próteses bifolhetos (LQE Bi).

Quando analisamos somente o total de eventos tromboembólicos (T) (Figura 2), a posição das curvas se inverte, ficando os portadores de próteses bifolhetos mais livres destes eventos. A mesma configuração se mantém para as curvas que consideram apenas os eventos tromboembólicos maiores (TM) (Figura 3). No caso dos eventos tromboembólicos menores (Tm) (Figura 4), as curvas estão muito próximas, devendo ser considerado, aqui, o pequeno número de pacientes, o que pode ter prejudicado esta análise.

Podemos avaliar por estas curvas que os pacientes com próteses bifolheto foram mais atingidos por complicações em seu total, mas estiveram mais livres das complicações tromboembólicas.

Na Figura 5, observamos a curva atuarial das próteses bifolheto está posicionada abaixo da curva das de monofolheto, indicando menor comprometimento destes últimos no total de complicações hemorrágicas ou potencialmente hemorrágicas (LHE). Nas complicações hemorrágicas mais graves, isto é hemorrágicas maiores, houve uma alternância de posições das duas curvas, estando as duas posicionadas próximas e na porção superior do gráfico, mostrando que menor número de pacientes foi atingido nesta modalidade de complicações. As maiores diferenças entre os dois grupos de próteses, em relação aos quadros hemorrágicos, ficaram mais restritas às hemorragias menores ou potencialmente hemorrágicas (LHm ou PH) (Figura 7) e às hemorragias menores (LHm) isoladamente (Figura 8), sendo que os pacientes com próteses valvares bifolheto estiveram mais sujeitos a estas complicações hemorrágicas de menor gravidade.

Os resultados que encontramos ajudam a reforçar a afirmação de Vongpatanasin et. al. [3] de que as próteses valvares cardíacas mecânicas de disco único teriam maior potencial trombogênico que as de duplo disco.

Misawa et al. [7], avaliando a experiência de 14 anos de utilização de 57 próteses Omnicarbon (monofolheto) encontraram, ao final de 10 anos, 80% dos pacientes com prótese na posição mitral livres dede eventos tromboembólicos.

Butchart et al. [8] apresentaram relato de 20 anos de experiência com a prótese valvar Meditronic Hall (monofolheto) na posição mitral em 796 casos. Ao final de 10 anos, 77% dos pacientes permaneceram livres de eventos tromboembólicos.

Ao final de 10 anos, Misawa et al. [8] encontraram 92% dos pacientes com prótese mitral livre de hemorragias importantes (maiores).

No estudo com próteses monofolheto (Meditronic Hall) de Butchart et al. [9] os porcentual de pacientes livres de acidentes hemorrágicos maiores, após 10 anos foi de 87% na posição mitral.

No estudo de Florez et. al. [6] com próteses valvares monofolheto Omnicarbon, nas posições aórtica, mitral e mitro-aórtica, num período de dez anos, curiosamente somente são citadas as complicações tromboembólicas em pacientes com próteses mitroaórticas, não ocorrendo com próteses na posição mitral e aórtica isoladamente. 97,6% dos pacientes mitro-aórticos estiveram livres de eventos tromboembólicos em 10 anos, sem nenhuma trombose de prótese. Os pacientes com próteses na posição mitral também não apresentaram complicações hemorrágicas, sendo que 94,2% dos pacientes aórticos e 92,3% dos mitro-aórticos estiveram livres de hemorragia significativa após 10 anos.

Ikonomidis et al. [10] publicaram a experiência sobre implante de próteses valvares cardíacas St. Jude Medical (bifolheto) entre janeiro de 1979 a dezembro de 2000. Os cálculos atuariais mostraram que, após 10 anos, 80% dos mitrais estiveram livres de qualquer evento tromboembólico; e, após 20 anos de acompanhamento, 71%. 86% dos mitrais estiveram livres de episódios hemorrágicos (não especificados se totais, maiores ou menores) após 10 anos; e, após 20 anos, 65%.

Podemos, então, comparar nossos dados atuariais com alguns encontrados na literatura, porém nos trabalhos citados não existe a comparação entre os dois tipos de prótese mecânica, como foi feito no presente trabalho.

Na série de Misawa et al. [7], com próteses monofolheto, as taxas de incidências linearizadas de eventos nos primeiros 5 anos para qualquer evento tromboembólico foi 2,28 por 100 pacientes-ano nos mitrais. Nos eventos hemorrágicos maiores apresentaram 1,02 por 100 pacientes-ano, nos mitrais.

Butchart et al. [8] no estudo também com próteses monofolheto, apresentaram taxas de incidência linearizadas para os acidentes tromboembólicos em 20 anos de 4,0 por 100 pacientes-ano nos mitrais. Os eventos tromboembólicos maiores foram considerados como acidentes vasculares cerebrais isquêmicos (AVCI), sendo, por isso, apresentadas as taxas de incidência de AVCI de 0,8 por 100 pacientes-ano; nos eventos tromboembólicos menores: 3,2 por 100 pacientes-ano e nos eventos hemorrágicos maiores foram de 1,4 por 100 pacientes-ano.

Florez et al. [6], avaliando próteses monofolheto, mostram taxas linearizadas de ocorrência de eventos de 0 para acidentes tromboembólicos para pacientes com próteses nas posições mitrais e aórticas isoladamente e 0,4 por 100 pacientes ano nos mitro-aórticos. Para os eventos hemorrágicos, as taxa foram de 0 para os mitrais, 0,6 para os aórticos e 0,8 por 100 pacientes-ano para os mitro-aórticos.

No estudo de Ikonomidis et al. [10] com próteses bifolheto, as taxas linearizadas de frequência para eventos tromboembólicos após 20 anos foi de 3,4 por 100 pacientes-ano para os mitrais. Nos eventos hemorrágicos (não especificados se, maiores ou menores), ao final de 10 anos de 2,2 por 100 pacientes-ano mitrais, e, após 20 anos: de 1,8 por 100 pacientes-ano.

Braile et al. [9], no Brasil, estudaram complicações em 126 próteses mitrais mecânicas monofolhetos de alguns tipos (49 Björk-Shiley, 71 Liliehei-Kaster, 6 Hall-Kaster), com todos portadores recebendo anticoagulante oral. A incidência de trombose e tromboembolismo foi 7,7 por 100 pacientes-ano para portadores de Björk-Shiley, 5,6 e 6,7 por 100 pacientes-ano para os com próteses Liliehei-Kaster e Hall-Kaster, respectivamente.

As taxas linearizadas de ocorrência de eventos encontradas na literatura não compararam próteses mono e bifolhetos. Em nossa avaliação do número de ocorrências por 100 pacientes/ano, de acordo com a Tabela 1, apesar das diferenças numéricas do valor de P, não se observaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois tipos de próteses estudados, considerando os efeitos tromboembólicos e hemorrágicos e suas subdivisões, após o ajuste estatístico de Poisson.

 

Devemos considerar algumas limitações neste estudo por ser retrospectivo, em que parte dos pacientes é portador de um tipo de prótese valvar cardíaca que praticamente não está mais em uso, e que as complicações mais importantes, ou graves, podem levar muito tempo para ocorrer (às vezes anos), o que dificulta um trabalho prospectivo na área.

 

CONCLUSÃO

Pelo estudo atuarial encontramos que os portadores de próteses valvares cardíacas monofolheto na posição mitral mostraram-se mais propensos à ocorrência de acidentes tromboembólicos graves em relação aos com próteses bifolheto. Os pacientes com próteses valvares cardíacas mecânicas bifolheto na posição mitral mostraram-se menos livres de acidentes hemorrágicos que os portadores de próteses valvares de disco único. Estas diferenças, no entanto, foram mais expressivas em episódios de sangramento de pouca gravidade, sem comprometimento clínico significativo.

REFERÊNCIAS

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Article receive on quinta-feira, 19 de setembro de 2013

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