Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

16

Views

ARTIGO ORIGINAL

Uso tópico de agente antifibrinolítico na redução do sangramento após revascularização cirúrgica do miocárdio

João Roberto BredaI; Danilo Bortoloto GurianII; Ana Silvia Castaldi Ragognetti BredaIII; Adriano MeneghineIV; Andréa Cristina de Oliveira FreitasV; Leandro Mattos LuongoVI; Luiz Carlos de AbreuVII; Adilson Casemiro PiresVIII

DOI: 10.1590/S0102-76382009000400013

INTRODUÇÃO

O uso sistêmico de agentes antifibrinolíticos permanece controverso, com evidências conflitantes em termos de benefícios e eventos adversos [1]. Assim, o uso tópico destes agentes, na cavidade pericárdica, passou a ser considerado como alternativa para redução do sangramento após operações cardiovasculares [2,3].

Entretanto, da mesma forma que o uso sistêmico, a aplicação tópica de antifibrinolíticos na cavidade pericárdica não representa procedimento de rotina nas operações cardíacas [4]. A aplicação tópica de ácido tranexâmico (AT) e aprotinina já foi testada em trabalhos anteriores, e uma das principais razões para não se preconizar o uso regular destes agentes é a falta de evidências dos possíveis benefícios [3,4].

Em 2000, De Bonnis et al. [5] publicaram estudo randomizado demonstrando pequeno benefício clínico a favor do uso tópico de AT quando comparado a placebo. Mais recentemente, em 2007, Baric et al. [6] compararam os efeitos da aplicação tópica de AT, aprotinina e placebo sobre o sangramento pós-operatório de 300 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, concluindo por benefício no uso tópico de antifibrinolíticos.

O objetivo deste trabalho é verificar o efeito da aplicação tópica do ácido epsilon-aminocapróico (AEAC) no pericárdio de pacientes submetidos à revascularização do miocárdio, comparando o volume de sangramento pósoperatório e a necessidade de transfusão de hemoderivados, entre os grupos antifibrinolítico e placebo.


MÉTODOS

Entre outubro de 2007 e outubro de 2008, 53 pacientes da mesma instituição foram alocados em um estudo prospectivo, randomizado e duplo-cego. Foram selecionados portadores de insuficiência coronariana crônica com indicação para revascularização cirúrgica do miocárdio, realizada com o auxílio de circulação extracorpórea (CEC).

Os critérios de exclusão foram: diagnóstico prévio de distúrbio da coagulação, operações associadas (além da revascularização miocárdica), revascularização miocárdica minimamente invasiva, reoperações, procedimentos de urgência ou emergência.

As características clínicas e demográficas dos dois grupos de pacientes estão descritas na Tabela 1.




O protocolo do estudo foi aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) e os pacientes concordaram em participar do estudo, assinando o termo de consentimento informado.

Técnica operatória

A operação iniciava-se com monitorização hemodinâmica com medida da pressão arterial média, pressão venosa central e débito urinário, além de controle com oximetria de pulso.

A operação era realizada de maneira habitual, a via de acesso em todos os casos foi esternotomia mediana. Utilizamos canulação aórtica e da veia cava inferior pelo átrio direito após administração de heparina por via intravenosa (400 UI/kg) para se obter tempo de coagulação ativado (TCA) maior do que 480 segundos, com hipotermia leve e proteção miocárdica por hipóxia controlada com pinçamento aórtico intermitente. Em todos os casos foi utilizado o sulfato de protamina para reversão completa da anticoagulação (proporção de 1:1).

Ao término da operação, os pacientes em normotermia eram conduzidos à Unidade de Pós-Operatório, onde foram monitorizados continuamente.

Todos os pacientes foram acompanhados durante a evolução hospitalar por um mesmo membro da equipe cirúrgica, com preenchimento de protocolo para comparação de dados pré e pós-operatórios.

Protocolo farmacológico

Após a seleção, o paciente era randomizado em um dos dois grupos do estudo. Um paramédico não envolvido diretamente na pesquisa realizava o preparo da medicação a ser utilizada topicamente, em local adequado e fora da sala de operação, contendo 24 gramas de AEAC diluídos em solução salina (num volume total de 250 ml) ou apenas solução salina (também 250 ml). A solução era enviada para sala de operação contendo somente um número de identificação, nenhum dos membros da equipe cirúrgica ou da unidade de pós-operatório tinha conhecimento do conteúdo do líquido a ser aplicado na cavidade pericárdica.

Em todos os pacientes, a terapia antiagregante foi interrompida 5 dias antes da operação e retomada 24 horas após o procedimento, com introdução de ácido acetilsalisílico (AAS) na dose de 100 mg/dia.

Análise estatística

A escolha das medidas de tendência central e dispersão dos valores que compõem as amostras, assim como dos testes estatísticos para comparação entre as mesmas, baseou-se no tipo de distribuição pelo teste de Kolmogorov- Smirnof. Para todas as análises utilizou-se o programa SPSS® versão 13.0 (SPSS Inc®, Ilinois, EUA).

Os valores obtidos pelo estudo de cada variável quantitativa foram organizados e descritos pela média e desvio padrão. Para as qualitativas utilizaram-se frequências absolutas e relativas.

Comparações da frequência de fenômeno entre grupos de variáveis qualitativas foram realizadas pela aplicação do teste exato de Fisher e qui-quadrado. Para a comparação entre as médias de duas populações amostrais utilizaramse os testes "t" de Student e o "U" de Mann-Whitney para variáveis paramétricas e não paramétricas, respectivamente.


RESULTADOS

Os dois grupos foram comparados em relação às suas características clínicas e demográficas pré-operatórias, não havendo diferenças entre eles (Tabela 1). Na comparação laboratorial entre as características hematológicas préoperatórias não se notou diferença estatisticamente significante nos valores de hemoglobina (grupo AEAC 12,9±2,41 x grupo placebo 12,2±3,36 g/dL; P=0,100) e hematócrito (grupo AEAC 39,7±4,02 x grupo placebo 38,7±4,73%; P=0,163) na comparação entre os grupos (Tabela 2). De forma semelhante, no pós-operatório não se observou diferença estatisticamente significante entre os grupos, nos valores de hemoglobina (grupo AEAC 9,18±0,92 x grupo placebo 8,85±1,48 g/dL; P=0,331) e hematócrito (grupo AEAC28,1±3,35 x grupo placebo 26,6±4,15%; P=0,162) (Tabela 3). Nenhum paciente foi reoperado para revisão de hemostasia. Os tempos de anoxia e perfusão estão descritos na Tabela 4.








O sangramento pós-operatório pelos drenos nas primeiras 24 horas (grupo AEAC 154,66±74,64 x grupo placebo 220,21±136,42 ml; P=0,031) foi menor no grupo AEAC, porém, em 48 horas (grupo AEAC 259,14±420,07 x grupo placebo 141,67±142,58 ml; P=0,197) e a perda acumulada até a retirada dos drenos (grupo AEAC 832,07±576,86 x grupo placebo 827,50±434,12 ml;P=0,975), não apresentou diferença estatisticamente significante. Houve menor necessidade de transfusão no grupo AEAC, com diferença estatisticamente significante (grupo AEAC 185,90±342,07 x grupo placebo 439,42±349,07 ml; P=0,016). Os valores de hemoglobina (grupo AEAC 9,18±0,92 x grupo placebo 8,85±1,48 g/dL; P=0,331) e hematócrito (grupo AEAC 28,15±3,35 x grupo placebo 26,67±4,15%; P=0,162) não mostraram diferença estatisticamente significante na comparação entre os grupos (Tabela 5).




DISCUSSÃO

Este estudo revelou efeito favorável da aplicação tópica do agente antifibrinolítico testado na redução do sangramento, avaliado pelo volume de drenagem pelos drenos. Na comparação entre os grupos notamos diminuição de aproximadamente 30% no débito dos drenos. Houve menor requerimento na transfusão de sangue, com resultado a favor do grupo AEAC. A perda cumulativa de sangue nas primeiras 24 horas foi menor no grupo AEAC do que no placebo (com diferença significante). A ausência de diferença no volume de drenagem acumulada até a retirada dos drenos era esperada e já havia sido identificada em outros trabalhos, que demonstraram que o maior efeito hemostático destes agentes dura até 6 horas da sua utilização [5,7].

Em 1993, Tatar et al. [2] publicaram o primeiro trabalho sobre o uso tópico de antifibrinolíticos, demonstrando um efeito benéfico na redução de sangramento e necessidade de transfusão em 25 pacientes portadores de doença coronária, utilizando a aprotinina. Este resultado foi confirmado posteriormente em estudo randomizado e duplocego, em 100 pacientes submetidos à revascularização cirúrgica do miocárdio (RCM) [3].

Em 1995, Ciçek et al. [7] verificaram que após o uso tópico de aprotinina no pericárdio não se evidenciava a presença desta substância no sangue dos pacientes operados e este fator poderia predispor a uma diminuição no "estado" fibrinolítico dos indivíduos submetidos à operação com auxílio de circulação extracorpórea (CEC).

De Bonis et al. [5] publicaram um estudo randomizado e duplo-cego, com 40 pacientes submetidos à revascularização miocárdica e observaram redução de 25% no volume de drenagem nas primeiras 24 horas, porém, não ocorreu redução na transfusão de hemoderivados.

Em 2007, Baric et al. [6] publicaram análise de 300 pacientes submetidos à operação cardíaca aberta, que foram randomizados em três grupos: placebo, ácido tranexâmico e aprotinina. Neste estudo duplo-cego e prospectivo, foi constatado um efeito favorável na aplicação tópica de antifibrinolítico: ambos os agentes testados (ácido tranexâmico e aprotinina) reduziram em aproximadamente 20% a perda cumulativa de sangue em relação ao grupo placebo. Entretanto, o trabalho não demonstrou uma redução significante na transfusão de sangue e hemoderivados na comparação entre os grupos.

A partir de 1990, o uso parenteral dos agentes antifirinolíticos foi amplamente adotado nas operações cardiovasculares, este fato foi acompanhado de crescente preocupação com a eficácia e segurança destes agentes. Dentre os três principais medicamentos disponíveis, a aprotinina foi o mais utilizado e testado [8-10]. Em 2007, Ferraris et al. [11] publicaram recomendação baseada nas evidências disponíveis na literatura como classe I (nível de evidência A): 1. Aprotinina em altas doses está indicada para reduzir transfusão, a perda total de sangue e a necessidade de reexploração em doentes de alto risco, submetidos à operação cardíaca. Os benefícios desta utilização precisam ser avaliados contra o risco de efeitos adversos renais. 2. Aprotinina em baixas doses está indicada para reduzir o número de pacientes que requerem transfusão sanguínea e ainda diminuir a perda total de sangue em operação cardíaca. 3. Análogos da lisina, como AEAC e ácido tranexâmico, estão indicados para reduzir a necessidade de transfusão e reduzir a perda total de sangue. Estes agentes são menos potentes do que a aprotinina e sua segurança requer estudos adicionais. Recentemente, foi suspensa temporariamente a comercialização da aprotinina pelo laboratório responsável pela sua fabricação, e esta decisão foi baseada nas informações fornecidas pela comissão executiva do estudo canadense BART (The Blood Conservation Using Antifibrinolytics in a Randomized Trial), cujos resultados preliminares demonstraram que os benefícios da administração do medicamento, na redução do sangramento, não foram suficientes para manter a continuidade do estudo [12].

Diante das incertezas sobre a segurança na utilização parenteral dos agentes antifibrinolíticos, sua aplicação tópica na cavidade pericárdica poderia ser uma alternativa atraente, com possibilidade de redução dos efeitos adversos destes medicamentos (sobretudo a nível renal e risco de trombose aguda de enxerto após revascularização miocárdica).

No nosso serviço, temos utilizado o AEAC parenteral de rotina nas operações cardíacas. Entretanto, após leitura do artigo de Baric et al. [6], que analisaram o efeito tópico da aprotinina e do ácido tranexâmico, decidimos testar a eficácia do AEAC aplicado topicamente no pericárdio, uma vez que este agente não foi avaliado anteriormente. Assim, apesar do número de pacientes incluídos, os resultados obtidos neste trabalho sugerem efeito positivo do AEAC aplicado topicamente no pericárdio, podendo representar uma alternativa aceitável com redução dos efeitos colaterais do uso sistêmico dos antifibrinolíticos. Uma possível complicação do uso tópico seria o aumento das aderências pericárdicas, dificultando ainda mais uma eventual reoperação, porém, esta situação foi sugerida em trabalho que testou a aprotinina e necessita de confirmação adicional [13].

Assim, com base nos resultados obtidos, concluímos que o uso tópico do AEAC apresentou efeito efetivo na redução do sangramento, sobretudo nas primeiras 24 horas de pós-operatório, com menor requerimento na transfusão de sangue quando comparado com uso de placebo. Trabalhos prospectivos adicionais com maior número de pacientes serão necessários para confirmar estes resultados.


REFERÊNCIAS

1. Levi M, Cromheecke ME, de Jonge E, Prins MH, de Mol BJ, Briët T, et al. Pharmacological strategies to decrease excessive blood loss in cardiac surgery: a meta-analysis of clinically relevant endpoints. Lancet. 1999; 54(9194): 1940-7.

2. Tatar H, Ciçek S, Demirkilic U, Ozal E, Süer H, Oztürk O, et al. Topical use of aprotinin in open heart operations. Ann Thorac Surg. 1993; 55(3): 659-61. [MedLine]

3. O'Regan DJ, Giannopoulos N, Mediratta N, Kendall SW, Forni A, Pillai R, et al. Topical aprotinin in cardiac operations. Ann Thorac Surg. 1994; 58(3): 778-81. [MedLine]

4. Hanif M, Nourei SM, Dunning J. Does the use of topical tranexamic acid in cardiac surgery reduce the incidence of post-operative mediatinal bleeding? Interact Cardiovasc Thorac Surg. 2004; 3(4): 603-5. [MedLine]

5. De Bonis M, Cavaliere F, Alessandrini F, Lapenna E, Santarelli F, Moscato U, et al. Topical use of tranexamic acid in coronary artery bypass operations: a double-blind, prospective, randomized, placebo-controlled study. J Thorac Cardiovasc Surg. 2000; 119(3): 575-80. [MedLine]

6. Baric D, Biocina B, Unic D, Sutlic Z, Rudez I, Vrca VB, et al. Topical use of antifibrinolytic agents reduces postoperative bleeding: a double-blind, prospective, randomized study. Eur J Cardiothorac Surg. 2007; 31(3): 366-71.

7. Ciçek S, Tatar H, Demirkiliç U, Kuralay E. Topical use of aprotinin in cardiac surgery. J Thorac Cardiovasc Surg. 1995; 110(2): 568-9. [MedLine]

8. Souza HJB, Moitinho RF. Estratégias para redução do uso de hemoderivados em cirurgia cardiovascular. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2008; 23(1): 53-59. [MedLine] Visualizar artigo

9. Mangano DT, Tudor IC, Dietzel C. Multicenter Study of Perioperative Ischemia Research Group; Ischemia Research and Education Foundation. The risk associated with aprotinin in cardiac surgery. N Engl J Med. 2006; 354(4): 353-65. [MedLine]

10. Karkouti K, Beattie WS, Dattilo KM, McCluskey SA, Ghannam M, Hamdy A, et al. A propensity score case-control comparison of aprotinin and tranexamic acid in high-transfusion-risk cardiac surgery. Transfusion. 2006; 46: 327-38. [MedLine]

11. Society of Thoracic Surgeons Blood Conservation Guideline Task Force, Ferraris VA, Ferraris SP, Saha SP, Hessel EA 2nd, Haan CK, Hoyston BD, et al. Perioperative blood transfusion and blood conservation in cardiac surgery: the Society of Thoracic Surgeons and The Society of Cardiovascular Anesthesiologists clinical practice guideline. Ann Thorac Surg. 2007; 83(5 Supp): S27-86. [MedLine]

12. Fergusson DA, Hébert PC, Mazer CD, Fremes S, MacAdams C, Murkin JM, et al. Bart Investigators. A comparison of aprotinin and lysine analogues in high-risk cardiac surgery. N Engl J Med. 2008; 358(22): 2319-31. [MedLine]

13. Cicek S, Theodoro DA. Topical aprotinin in cardiac operations: a note of caution. Ann Thorac Surg. 1996; 61(3): 1039-40. [MedLine]

Article receive on segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

CCBY All scientific articles published at rbccv.org.br are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY