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RELATO DE CASO

Trombocitopenia adquirida e cirurgia cardíaca: relato de caso

Hélcio GIFFHORN0; Amândio RAMPINELLI0; Lourival BONATELLI FILHO0; Jauro COLLAÇO0

DOI: 10.1590/S0102-76382002000200011

RESUMO

Trombocitopenia é um grande problema hemostático em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca. Relataremos dois casos de pacientes com diminuição adquirida das plaquetas: um devido a uremia e outro por disfunção valvar (disfunção de prótese em posição mitral). Estes pacientes tiveram períodos de transoperatório e pós-operatório imediato sem intercorrência. A perda sangüínea não foi maior do que a esperada. A transfusão de plaquetas realizada durante a operação pode prevenir futuras complicações na recuperação do paciente.

ABSTRACT

Thrombocytopenia is a major problem in patients undergoing cardiac surgery. We will report two surgical cases with acquired decrease of platelets: one due uremia and other of a valvar dysfunction. These patients had an uneventful recovery in the transoperatory and immediately post-operatory phases. Blood loss was not higher than the expectected. Transfusion of platelets helded in the surgery could prevent future complications in the early recovery of the patient.
INTRODUÇÃO

Alterações hemostáticas presentes no pré-operatório de operação cardíaca representam um grande risco cirúrgico porque elas podem aumentar após a operação com circulação extracorpórea. A disfunção plaquetária é o defeito hemostático mais comumente observado na fase de pós-operatório imediato. Atenção especial deve ser tomada se o paciente já apresenta trombocitopenia no pré-operatório(1).

RELATO DOS CASOS

Caso 1

Paciente Q.T.O., branco, do sexo masculino, 70 anos de idade, portador de bioprótese mitral e fibrilação atrial crônica, chegou ao hospital em insuficiência cardíaca (NYHA III). O exame físico revelava um sopro sistólico em focos mitral e tricúspide, estertores bolhosos de médias bolhas em campos médios pulmonares. As escleras estavam hipocoradas. Não havia outros achados ao exame físico. Exames laboratoriais: hemoglobina, 13,7g/dl; leucócitos, 9700/mm3; contagem de plaquetas, 83000/mm3; parcial urina, normal; teste de Coombs, negativo; haptoglobinas, 82,6mg/dl; LDH, 896 U/L; bilirrubina total, 1,44mg/dl; uréia, 72mg/dl e creatinina, 0,96mg/dl.

O hematologista assistente ao caso concluiu que a origem da trombocitopenia era por destruição plaquetária pela prótese com disfunção. A contagem plaquetária imediatamente antes da operação era de 79000/mm3. O paciente foi submetido a operação para retroca da prótese valvar, sendo colocada uma nova prótese do tipo biológica porcina de número 31. O tempo de circulação extracorpórea foi de 110 minutos e o tempo de oclusão aórtica de 71 minutos. A perda estimada de sangue no período transoperatório foi de 650ml. Durante a operação foi usado ácido tranexâmico na dose de 2,0g. A drenagem no período pós-operatório imediato foi de 628ml e de 200ml no primeiro e segundos dias de UTI, respectivamente. O paciente necessitou usar marcapasso temporário por 36 horas devido a ritmo juncional de resposta ventricular baixa. A contagem de plaquetas foi de 32000/mm3 imediatamente após a circulação extracorpórea e elevou-se a 87000/mm3 no primeiro dia pós-operatório. O paciente recebeu 10 unidades de concentrado de plaquetas após a circulação extracorpórea e na chegada à UTI. Ele recebeu alta hospitalar no 14º dia de pós-operatório assintomático. A contagem plaquetária na alta hospitalar era de 127000/mm3.

Caso 2

Paciente Q.T.S., do sexo masculino, branco, apresentava diabete melito não insulino-dependente, gota, doença arterial coronariana e insuficiência renal crônica de origem vascular. A história clínica era angina de classe funcional II (CASS). O exame físico não apresentava particularidades. Não havia história clínica de hemorragias. Exames laboratoriais pré-operatórios: hemoglobina, 10,2g/dl; número de leucócitos, 4500/mm3; contagem de plaquetas, 99000/mm3; uréia, 102mg/dl; creatinina, 3,77mg/dl. O número de plaquetas imediatamente antes da operação era de 82000/mm3. O ecocardiograma com doppler demonstrou hipertrofia ventricular esquerda. O estudo cineangiocoronariográfico revelou lesões coronárias múltiplas (artéria coronária direita - lesões de 40 e 60%; tronco de coronária esquerda - 50%; artéria descendente anterior - 90% na origem e ocluída após o primeiro ramo diagonal; artéria circunflexa - com lesão de 40% na origem) associada à hipertrofia ventricular esquerda. A contractilidade miocárdica era normal e a manometria cardíaca apresentava hipertensão arterial sistêmica: aorta 200/100/143mmHg e ventrículo esquerdo 200/20mmHg.

O número baixo de plaquetas era devido à insuficiência renal crônica. O paciente foi submetido à operação de revascularização miocárdica (ponte de veia safena para o primeiro ramo diagonal e ponte de veia safena para o ramo circunflexo). O tempo de circulação extracorpórea foi de 41 minutos e 14 minutos de oclusão aórtica. Não foi empregado o ácido tranexâmico (reservado para os casos de reoperação em nosso Serviço) e foram transfundidas 10 unidades de plaquetas (aproximadamente 500ml). A perda estimada de sangue no transoperatório foi de 1000ml. A operação transcorreu sem problemas. A perda de sangue na primeira noite após a operação foi de 275ml e de 180ml no primeiro dia de pós-operatório. A contagem plaquetária foi de 69000 e 87000/mm³ nestes dias, respectivamente. O paciente não recebeu transfusão de sangue ou seus derivados. Ele permaneceu dois dias na UTI e recebeu alta hospitalar no 11º dia pós-operatório assintomático. A contagem plaquetária na alta hospitalar era de 110000/mm³.

COMENTÁRIOS

A contagem normal de plaquetas varia de 150000 a 350000/mm³ e trombocitopenia ocorre quando o número de plaquetas está abaixo de 150000/mm³ (2). Os dois pacientes acima discutidos apresentavam anormalidades na contagem plaquetária de diferentes origens: lesão plaquetária por uma superfície vascular anormal (disfunção de prótese valvar) e uremia. No primeiro caso, a superfície irregular devido à disfunção da bioprótese em posição mitral foi a única causa identificável que poderia diminuir o número de plaquetas. A disfunção da bioprótese leva à ativação plaquetária com liberação dos corpos densos, numa seqüência similar a da ativação fisiológica(3). O segundo paciente apresentava insuficiência renal crônica e a uremia pode explicar a presença do menor número de plaquetas. O mecanismo exato desta alteração ainda não foi determinado(4). Atualmente, a patogênese dos efeitos hemostáticos em pacientes urêmicos estaria relacionada a dois mecanismos: interação defeituosa da parede vascular com a plaqueta circulante e um fator de von Willebrand defeituoso (responsável pela aderência plaquetária).

A plaqueta torna-se ativada durante a circulação extracorpórea pelo contato com superfícies não-endoteliais na máquina coração-pulmão e com produtos de granulócitos e células endoteliais ativadas durante a circulação extracorpórea. As plaquetas apresentam maior lesão quando usados oxigenadores de bolhas(1). Outros fatores que também alteram o número de plaquetas após a operação cardíaca são o uso da hipotermia e do sulfato de protamina. Os dois pacientes estudados fizeram uso de oxigenadores do tipo membrana e "bio-pump" durante a circulação extracorpórea. Ocorre recuperação plaquetária normalmente somente após seis a oito horas da operação(1).

Alguns cuidados especiais devem ser tomados quando um paciente com plaquetopenia é encaminhado para operação cardíaca com circulação extracorpórea. O banco de sangue deve ser notificado para reservar concentrado de plaquetas para transfusão durante a operação e no pós-operatório imediato. O uso de "cell-saver" permite otimizar a recuperação do sangue (hemáceas lavadas) aspirado do campo operatório. O ácido tranexâmico é empregado em nosso Serviço somente em casos de reoperações, apesar do melhor efeito proporcionado pela aprotinina na proteção da função plaquetária contra o ataque da plasmina durante a circulação extracorpórea (5).

Em cirurgia cardíaca, a causa mais comum de trombocitopenia pré-operatória é aquela relacionada a medicações usadas antes da operação. Diuréticos tiazídicos, quinidina, acetaminofen, acetazolamida, digitoxina, fenitoína, ácido etacrínico, alfa- metildopa, espironolactona, heparina, todos têm sido implicados em várias causas de trombocitopenia induzida por drogas, embora o mecanismo exato nem sempre tenha sido bem definido.

A trombocitopenia induzida por heparina pode ser de dois tipos: I causada pela interação direta entre heparina e as plaquetas ; II causada por reação imune mediada por imunoglobulinas G(6-8). Pacientes recebendo heparina apresentam estes efeitos numa incidência de 5 a 25% dos casos(9). O paciente do segundo caso clínico usava heparina por via subcutânea, mas ela não é considerada como uma causa de diminuição do número de plaquetas em pacientes(9) - (Quadro 1).



Nos pacientes a serem submetidos a circulação extracorpórea, podem ser realizadas avaliações imunológicas (teste de anticorpos contra heparina com o plasma do próprio paciente) (8,10).

Para a anticoagulação alternativa a ser usada não há um consenso. À exceção do heparinóide danaparóide (ORG 10172), as heparinas de baixo peso molecular podem apresentar reação cruzada em 80 a 90% dos casos(7,11-13). Outras opções seriam o iloprost (12,14,15), o ancrod (16-18), argatroban (19), e a hirudina recombinante (20-23) - (Quadro 2).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Article receive on sexta-feira, 1 de junho de 2001

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