Article

lock Open Access lock Peer-Reviewed

3

Views

ARTIGO ORIGINAL

Anuloplastia concêntrica do anel mitral, isolada ou associada à ressecção quadrangular, em crianças e jovens

Mauro B. Arruda Filho; Heraldo Maia e Silva JR.; Sérgio C. Rayol; Flávia A. G. Santos; Claudia A. B. Gusmão; Ana Paola M. Arruda; Audes D. M. Feitosa; Mauro B. Arruda

DOI: 10.1590/S0102-76382004000100006

RESUMO

OBJETIVO: Descrever procedimento cirúrgico de anuloplastia concêntrica do anel mitral sem prótese, isolada ou associada à ressecção quadrangular com plicatura póstero-medial do anel mitral, e analisar os resultados imediatos e tardios obtidos. MÉTODO: Entre fevereiro de 1986 e fevereiro de 2001, realizamos 790 procedimentos abordando a valva mitral, 41 foram realizados em crianças e adolescentes menores de 20 anos (média de 9,7 anos). Vinte (48,7%) pacientes eram do sexo feminino e 21 (51,3%) do masculino. A doença reumática foi responsável pelas lesões em 92,6% dos casos e a degeneração mixomatosa em apenas 7,4%. No período pré-operatório, 22 (53,6%) pacientes estavam em classe funcional III e 19 (46,4%) em classe funcional IV, advindos de repetidos surtos de febre reumática, agravados pela desnutrição. A técnica cirúrgica utilizada foi a anuloplastia concêntrica, aplicada isoladamente ou em associação à ressecção quadrangular com plicatura póstero-medial. O curso do seguimento pós-operatório foi de 7 meses a 15 anos (3/2/1986 a 12/2/2001). RESULTADOS: A mortalidade hospitalar foi de 2,4%. Os pacientes receberam alta sem sopro sistólico de regurgitação mitral. Dois pacientes apresentaram, ao longo dos anos (4 e 11 anos), estenose mitral e necessitaram reoperação, um deles operado com dois anos de idade. Dois doentes foram reoperados para corrigir disfunção aórtica previamente abordada por plastia (12 e 18 meses após a primeira operação), morrendo e contribuindo para mortalidade tardia de 5%. CONCLUSÃO: Consideramos a técnica empregada um procedimento alternativo, válido, de aplicação preferencial em crianças e adolescentes, de fácil reprodução e de baixíssimo custo.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To describe the mitral anuloplasty technique either in isolation or associated with posterior quadrantectomy and to analyze the immediate and late results in young patients. METHOD: Between February 1986 and February 2001, 790 mitral valve procedures were performed in our Institution including 41 annuloplaties in patients with ages ranging from 1 to 20 years (Mean age = 9.7 years). 51.7% were males. The main etiologies were rheumatic disease (92.6%) and myxomatous degeneration (7.4%). Twenty-two (53.6%) patients were preoperatively in functional class III (NYHA), and 19 (46.4%) in class IV (NYHA), some in course of rheumatic fever aggravated by malnutrition. The technique employed was concentric mitral annuloplasty either in isolation or associated with posterior quadrantectomy. The follow-up ranged from 7 months to 15 years. RESULTS: The hospital mortality rate was 2.4%. All patients were discharged without mitral regurgitation. Two patients coursed with mitral stenosis (after 4 and 11 years respectively) and valve replacement was needed. Two patients coursed with aortic insufficiency (after 12 and 18 months) and died after aortic valve replacement, contributing to a 5% late mortality rate. CONCLUSION: In conclusion, mitral annuloplasty without ring either in isolation or associated with posterior quadrantectomy is a safe, easily reproducible especially in young patients.
INTRODUÇÃO

A doença reumática grassa nas regiões carentes, incidindo numa prevalência elevada (2/1000 hab.), atingindo crianças e adolescentes e mesmo adultos jovens, comprometendo especialmente o músculo cardíaco e deixando, quase sempre, seqüelas valvares [1].

A insuficiência mitral reumática é, sem duvida, a lesão mais freqüente. Para corrigi-la, utilizando substitutos valvares em crianças e adolescentes, enfrentamos limitações, quer por razões socioeconômicas, quando se pretende usar uma prótese metálica em face da dificuldade na manutenção da anticoagulação por longo tempo, quer em função da alta morbidade, quando se pretende utilizar uma prótese biológica, em função de sua precoce degeneração. A anuloplastia concêntrica mitral sem prótese por nós preconizada é um procedimento pouco referido na literatura, o que torna válida a presente divulgação.

MÉTODO

Entre fevereiro de 1986 e fevereiro de 2001, realizamos no Serviço de Cirurgia Cardiovascular e Torácica do Real Hospital Português de Beneficência em Pernambuco, 790 procedimentos abordando a valva mitral, sendo 41 deles em crianças e adolescentes menores de 20 anos de idade (média de 9,7 anos). Vinte (48,7%) pacientes eram do sexo feminino e 21 (51,3%) do masculino. A febre reumática foi responsável pela lesão em 92,6% e a degeneração mixomatosa em 7,4% dos pacientes. No período pré-operatório, 22 (53,6%) pacientes estavam na classe funcional III e 19 (46,4%) em classe funcional IV, advindos de repetidos surtos de febre reumática. Alguns pacientes foram operados na vigência da fase aguda da doença, agravada pela desnutrição - (Tabela 1).



A técnica cirúrgica empregada foi a anuloplastia concêntrica mitral sem prótese, que é feita ancorando-se dois fios de Ethibond 2-0 num feltro de teflon, tomando-se como ponto de referência para o início da sutura circular, o meio da implantação anular do folheto anterior e daí caminhando em uma camada de pontos de sutura corrida profunda no anel, no sentido anti-horário até alcançar o ponto médio de implantação anular do folheto mural ou posterior. Utilizando-se a outra alça do fio de Ethibond 2-0, seguimos o mesmo trajeto da alça anterior, completando-se a metade do anel mitral com duas camadas de sutura contínua. Um outro fio de Ethibond 2-0 é passado no feltro de Teflon que serve de ancoramento à sutura anterior e cada uma das alças do fio é passada em ponto profundo no anel, agora no sentido horário até ambas as alças alcançarem a porção medial do anel de implantação do folheto posterior. Um outro retalho de feltro de Teflon ancora as quatro alças das suturas. A aferição prévia do comprimento do folheto anterior possibilita a escolha do diâmetro do obturador atrioventricular (Nº 23, 25, 27) desejado, que é inserido através valva mitral. As duas duplas suturas são apertadas com um torniquete, ajustando-se o novo anel mitral ao diâmetro do obturador. Com a amarração dos fios termina o procedimento de anuloplastia concêntrica (Figuras 1 e 2).





A ressecção quadrangular e a plicatura póstero-medial do anel mitral é um procedimento clássico já descrito [2,3], que também foi utilizado. A sua associação à anuloplastia concêntrica é um recurso a mais do procedimento. A aplicação da ressecção quadrangular como procedimento associado à anuloplastia foi feita em 11 (26,2%) pacientes - Tabela 2. A anuloplastia concêntrica se acha indicada em todos os casos onde há dilatação do anel mitral com folhetos e cordas íntegras ou espessados (Figura 3).






Todos os pacientes foram operados com circulação extracorpórea, canulação das duas veias cavas e aorta ascendente, hipotermia moderada, proteção miocárdica com cardioplegia sanguínea normotérmica, repetida quando necessário, complementada com gelo de solução fisiológica a 0,9% na cavidade pericárdica. O tempo médio de perfusão foi de 30,5 minutos e de 21 minutos quando se fez apenas a anuloplastia concêntrica. O tempo médio de pinçamento da aorta foi de 22 minutos e 16 minutos para anuloplastia concêntrica. No período pós-operatório, foram tomados os cuidados de rotina estabelecidos para cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea.

RESULTADOS

Ocorreu um (2,4%) óbito no pós-operatório imediato por falência miocárdica e dois óbitos advindos de reoperação para corrigir falência da plastia aórtica previamente realizada (12 e 18 meses após a primeira operação). Foram realizadas quatro reoperações, duas delas para corrigir disfunção aórtica e em dois outros pacientes que evoluíram com estenose mitral (4 e 11 anos) após anuloplastia, por progressão da doença reumática, um deles aos 23 meses de idade e reoperado 11 anos depois.

Dezenove (46,5%) pacientes que estavam no pré-operatório em classe funcional IV da NYHA migraram para as classes funcionais I e II e 22 (53,6%) pacientes que estavam em classe funcional III, migraram para classe funcional I e II e apenas um paciente continua em classe funcional III - Tabela 3.



A curva actuarial de sobrevida é de 92,7%, com 86,8% dos pacientes livres de reoperações, em um período de 7 meses a 15 anos (Figura 4).



COMENTÁRIOS

A pobreza facilita a alta incidência de febre reumática em nosso meio, possibilitando o aparecimento de seqüelas valvares, comprometendo uma ou mais valvas do coração, em crianças e adolescentes.

A insuficiência mitral isolada ou associada à insuficiência aórtica constitui a lesão mais freqüente e é responsável pelo quadro clínico precoce de insuficiência cardíaca congestiva significativa, que pré-operatoriamente classificaram este grupo de pacientes nas classes funcionais III e IV da NYHA, vindo a se constituir num grande contingente de valvulopatias cirúrgicas.

A afirmação de que a dilatação do anel mitral não é responsável pela insuficiência mitral [4] não está de acordo com a nossa experiência. Em nosso meio, a insuficiência mitral é a seqüela mais freqüente da febre reumática, representando 92,6% nesta série de casos, que se inicia, já na fase da cardite reumática, condicionando um aumento do índice cardiotorácico, responsável pela dilatação do anel mitral e, conseqüentemente, insuficiência mitral, sem que necessariamente existam alterações estruturais de cordas e folhetos.

Os recorrentes episódios de febre reumática e a dificuldade clínica do controle da insuficiência cardíaca congestiva neste grupo direcionam estes pacientes para uma solução cirúrgica, mesmo nas faixas etárias mais baixas. Nosso paciente mais jovem tinha 1 ano e 11 meses e o mais velho 20 anos (média de 9,7 anos).

Na correção da insuficiência mitral reumática em crianças e adolescentes, se o cirurgião fizer a opção pela utilização de uma prótese valvar irá enfrentar dilemas, quer de origem socioeconômica, quando se pretende usar uma prótese metálica em razão da dificuldade na manutenção da anticoagulação, quer em razão da elevada morbidade, quando se pretende usar uma prótese biológica por sua precoce degeneração.

Daí, a necessidade da valorização das técnicas cirúrgicas que proporcionam a preservação da valva nativa. Inegavelmente, CARPENTIER et al. [5] foram responsáveis por difusão universal da técnica de preservação valvar por reconstituição.

Curiosamente, todas as variáveis técnicas de plastia propostas para a correção da insuficiência mitral têm como objetivo reduzir o diâmetro do anel mitral [6-13]. ANTUNES [10] justifica o emprego do anel rígido para restabelecer o diâmetro, fornecendo o suporte e a forma do anel mitral e estabilizando a plastia realizada.

A técnica de anuloplastia concêntrica sem prótese aqui descrita, associada ou não à quadrantectomia com plicatura do anel póstero-medial, tem como finalidade estabilizar o mecanismo funcional da valva mitral, ajustando a coaptação dos seus folhetos, sem a necessidade de encurtar, alongar ou transferir cordas. Esta técnica foi utilizada em 41 crianças e adolescentes, que apresentam uma curva actuarial de sobrevida de 92,7%, com 86,8% de pacientes livres de reoperações, no período de 7 meses a 15 anos.

CONCLUSÃO

Face aos resultados obtidos, corrigindo-se a insuficiência mitral predominantemente reumática com a técnica da anuloplastia concêntrica que preconizamos, associada ou não à ressecção quadrangular e plicatura póstero-medial do anel mitral, nos permite concluir que o método é valido, de fácil execução e, principalmente, de baixo custo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Gus I, Zaslavsky C, Seguer JM, Machado RS. Epidemiologia da febre reumática aguda: estudo local. Arq Bras Cardiol 1995; 65:321-5.

2. Wooler GA, Nixon PGF, Grimshan VA, Watson DA. Experience with repair of the mitral volume in incompetence. Thorax 1962; 17:49-57.

3. Reed GE, Tice DA, Clauss RH. Asymmetric exaggerated mitral annuloplasty: repair of mitral insufficiency with hemodynamic predictability. J Thorac Cardiovasc Surg 1965; 49:752-61.

4. Bulkley BH, Roberts WC. Dilatation of mitral annulus: a rare case of mitral regurgitation. Am J Med 1975; 59:457-63.

5. Carpentier A, Deloche A, Dauptain J, Soyer R, Blondeau P, Piwnica A et al. A new reconstructive operation for correction of mitral and tricuspid insufficiency. J Thorac Cardiovasc Surg 1971; 61:1-13.
[ Medline ]

6. Arruda MB, Moraes CR, Lagreca JR et al. Anuloplastia mitral em crianças e adolescentes. Rev Col Bras Cir 1974; 9:219-22.

7. Merendino KA, Thomas GI, Jesseph JE, Herron PW, Winterscheid LC, Vetto RR. The open correction of rheumatic mitral regurgitation and/or stenosis with special reference to regurgitation treated by posteromedial annuloplasty utilizing a pump-oxygenator. Ann Surg 1959; 150:5-22.

8. Gregori Jr. F, Silva SS, Baba X, Queiroz LT, Takeda R, Façanha LA et al. Um novo modelo de anel protético para pacientes com insuficiência mitral: relato de 2 casos. Arq Bras Cardiol 1988; 50:417-20.
[ Medline ] [ Lilacs ]

9. Burr LH, Krayenbuhl C, Sutton MS. The mitral plication suture: a new technique of mitral valve repair. J Thorac Cardiovasc Surg 1977; 73:589-95.
[ Medline ]

10. Antunes JM. Mitral valve repair. Germany: R.S. Schultz; 1989. p.91.

11. Pomerantzeff PMA, Amato M, Stolf NAG, Marcial MB, Grinberg M, Pileggi F et al. Experiência com plástica de valva mitral. Arq Bras Cardiol 1985; 45 (suppl 1): 156.

12. Braile DM, Ardito RV, Pinto GH, Santos JLV, Zaiantchick M, Souza DRS et al. Plástica mitral. Rev Bras Cir Cardiovasc 1990; 5:86-98.
[ Lilacs ]

13. Carpentier A, Chauvaud S, Fabiani JN, Deloche A, Relland J, Lessana A et al. Reconstructive surgery of mitral valve incompetence: ten years appraisal. J Thorac Cardiovasc Surg 1980; 79:338-48.
[ Medline ]

Article receive on segunda-feira, 1 de setembro de 2003

CCBY All scientific articles published at rbccv.org.br are licensed under a Creative Commons license

Indexes

All rights reserved 2017 / © 2024 Brazilian Society of Cardiovascular Surgery DEVELOPMENT BY