DADOS CLÍNICOS
Criança com 9 meses, 7 kg, sexo masculino, natural de Fronteira, MG. Nascido a termo com 3,3 kg, no 10º dia de vida foi observado sopro cardíaco, porém encaminhado ao cardiologista pediátrico com 5 meses por cansaço às mamadas, transpiração excessiva e ganho de peso inadequado. Com a clínica orientando para cardiopatia congênita com hiperfluxo pulmonar e insuficiência cardíaca congestiva (ICC) presente, foi solicitado radiografia de tórax, eletrocardiograma e ecocardiograma, os quais foram complementados pela tomografia computadorizada de múltiplos detectores (TCMD).
Em uso de digital e diurético, no exame físico apresentava-se em bom estado geral, afebril, acianótico e taquidispneico.
Ictus cordis posicionado à direita, ritmo cardíaco regular em dois tempos, sopro sistólico ejetivo ++/4+ em borda esternal direita média. Ausculta pulmonar com estertores bolhosos esparsos. Abdome flácido, fígado a 3 cm do rebordo costal esquerdo. Pulsos palpáveis e simétricos nos quatro membros.
ELETROCARDIOGRAMA
Ritmo sinusal, frequência 150 bat/min. PR 80ms, QRS 80ms e QT 200ms. Onda P negativa em D1 e AVL característica de situs
inversus totalis. Possível sobrecarga de ventrículo direito (Figura 1).

Fig. 1 - Eletrocardiograma com onda P negativa em D1 e AVL sugerindo situs inversus totalis
RADIOGRAMA
Discreto aumento da silhueta cardíaca com ápice para a direita, índice cardiotorácico de 0,71. Sinais de aumento da trama vascular pulmonar com características de hiperfluxo. Nota-se compressão na parede lateral direita da porção distal da traquéia, sugerindo arco aórtico à direita. Fígado horizontalizado (Figura 2A). No perfil, observa-se aumento da cavidade ventricular anterior (contato maior que 2/3 com o esterno) e, nos hilos pulmonares, duas artérias epibrônquicas e brônquios com o mesmo comprimento (Figura 2B).

Fig. 2 - Radiografias de tórax: (A) Frente em PA com dextrocardia e aumento de área cardíaca. (B) Perfil esquerdo com duas artérias epibrônquicas e brônquios do mesmo comprimento
ECOCARDIOGRAMA E TOMOGRAFIA
O ecocardiograma diagnosticou s
itus inversus totalis em dextrocardia, comunicação interatrial (CIA)
ostium secundum de pequeno tamanho, comunicação interventricular (CIV) ampla, estenose valvar pulmonar de grau discreto por espessamento das válvulas e fusão comissural, veia ázigo dilatada drenando na veia cava superior (VCS) localizada à esquerda próxima ao átrio direito (AD) também posicionado à esquerda. Presença de veia drenando anormalmente na região posterior do AD posicionado à esquerda, o que sugere serem veias pulmonares esquerdas, caracterizando conexão anômala parcial de veias pulmonares esquerdas (CAPVP) no AD. Ao
Doppler havia gradiente médio entre o ventrículo direito e o tronco pulmonar (TP) de 24 mmHg e ausência de gradiente significativo pela CIV.
A TCMD, além da CAPVP, concluiu que havia isomerismo atrial esquerdo, com as veias pulmonares que drenavam o pulmão à esquerda e a VCS desembocando no átrio à esquerda, que apresentava características de átrio esquerdo (AE), e as veias pulmonares que drenavam o pulmão à direita desembocando no átrio à direita também com características de AE. A veia cava inferior (VCI) continuava-se como veia ázigo, a qual drenava na VCS posicionada à esquerda. Também havia uma CIA e o arco aórtico era à direita (Figuras 3A e 3B).

Fig. 3 - Tomografia de múltiplos detectores após reconstrução em 3D: (A) Vista posterior com aorta descendente à direita, artérias pulmonares simétricas e epibrônquicas, brônquios também simétricos originando dois brônquios lobares semelhantes, todos com características anatomicamente esquerdas. (B) Vista posterior com veia cava superior à esquerda, veias supra-hepáticas drenando para uma veia comum que, por sua vez, desemboca no átrio à esquerda e dois troncos venosos pulmonares drenando para cada um dos átrios
DIAGNÓSTICO
A clínica de ICC na presença de CAPVP e CIV foram soberanas e suficientes para indicar a correção cirúrgica, porém os dados conflitantes quanto ao
situs ficou evidente com o exame físico, o eletrocardiograma e o ecocardiograma, que sugeriam
situs inversus totalis. A radiografia com brônquios de mesmo comprimento e fígado horizontalizado era favorável a isomerismo atrial esquerdo, indo de encontro com os achados da TCMD que demonstravam dois brônquios com configuração de esquerdos, simétricos, selados; duas artérias pulmonares epibrônquicas e ambos os pulmões bilobulados, além da presença de poliesplenia e interrupção da VCI, que constitui dado extremamente fidedigno de isomerismo atrial esquerdo. Também o fato de haver duas veias pulmonares esquerdas drenando para o átrio posicionado à esquerda apontava para isomerismo atrial esquerdo, o qual foi confirmado durante a operação.
Importante salientar que o aspecto externo do apêndice atrial não é o melhor selo de morfologia direita ou esquerda, devendo-se valorizar a presença de trabeculações na parede inferior do átrio para caracterizá-lo como direito ou ausência delas para designar um átrio como esquerdo [1].
OPERAÇÃO
Com o cirurgião posicionado à esquerda do paciente, como já descrito anteriormente para pacientes com
situs inversus totalis [2], após a toracotomia transesternal mediana e abertura do saco pericárdico foi possível observar as características externas do coração, sendo de difícil definição se o átrio posicionado à esquerda era anatomicamente direito ou esquerdo (Figura 4).

Fig. 4 - Átrio posicionado à esquerda sendo tracionado pela pinça com características anatômicas externas que lembram o átrio direito
Independentemente do aspecto externo, a operação consistiu em confecção de bolsas circulares em aorta com fio de polipropileno 5-0 e em VCS e veias supra-hepáticas com fio de polidioxanona 6-0. Heparinização com 4 mg/kg e introdução de cânulas de diâmetros adequados para o peso.
Iniciada a circulação extracorpórea convencional, hipotermia a 25ºC, pinçamento aórtico, abertura do átrio posicionado à esquerda, encontrado duas veias pulmonares do pulmão esquerdo drenando neste átrio, sendo uma veia pulmonar mais alta e próxima à grande VCS à esquerda e a outra próxima do septo interatrial e mais medial com relação à posição da VCS e as veias supra-hepáticas. A parede interna do átrio era lisa, sem trabeculações, sugerindo estarmos realmente diante um isomerismo atrial esquerdo (Figura 5).

Fig. 5 - Átrio posicionado à esquerda aberto onde se conectam as veias cavas e se observa anomalamente orifícios de veias pulmonares que drenam o pulmão esquerdo. Nota-se o aspecto interno liso que indica átrio anatomicamente esquerdo
Observada a CIA pequena em posição alta no septo interatrial, ressecada toda a lâmina da fossa oval e verificado que havia possibilidade de redirecionamento de fluxo de todas as veias pulmonares para a valva mitral.
O TP, posicionado à direita e anterior, foi aberto anteriormente e a valva pulmonar era totalmente normal, com três válvulas, sem espessamentos ou fusões e com diâmetro adequado para o peso da criança. A via de saída do ventrículo direito, posicionado à direita, também era absolutamente normal e de calibre adequado. O TP foi suturado com polipropileno 5-0.
A CIV era muscular de via de entrada do ventrículo direito. Para evitar qualquer risco de bloqueio, foram passados oito pontos em "U" de polipropileno 6-0 ancorados em almofadas de pericárdio bovino, todos distantes das bordas e superficialmente na parede do ventrículo direito, que estava anterior e à direita. A CIV foi fechada com grande placa de pericárdio bovino como habitualmente. A valva tricúspide necessitou três pontos ancorando a válvula septal à anterior para manter-se totalmente competente e sem estenose.
O redirecionamento de fluxo de todas as veias pulmonares foi possível com uma grande placa de pericárdio bovino, que foi suturada da borda mais alta do septo interatrial, posicionando-se em direção inferior à VCS e anterior às veias pulmonares que drenavam do pulmão esquerdo, de tal forma que permitia a orientação do fluxo das veias pulmonares para a valva mitral e o sangue da VCS e supra-hepáticas para a valva tricúspide.
O átrio posicionado à esquerda foi fechado com polipropileno 5-0 após a retirada adequada de ar das cavidades esquerdas e direitas. O tempo de perfusão foi de 111 minutos e isquemia miocárdica, 82 minutos.
A evolução na Unidade de Terapia Intensiva foi habitual, com drogas inotrópicas nas primeiras 48 horas. A alta hospitalar ocorreu no 9º dia de pós-operatório em uso de digital e diurético. O ecocardiograma realizado 3 meses após a operação, apesar das dificuldades técnicas, demonstrou fisiologia normal reconstituída sem defeitos residuais.
AGRADECIMENTO
À Profa Dra. Vera Demarchi Aiello, pelas orientações e discussão do caso.
1. Sharma S, Devine W, Anderson RH, Zuberbuhler JR. The determination of atrial arrangement by examination of appendage morphology in 1842 heart specimens. Br Heart J. 1988;60(3):227-31. [MedLine]
2. Croti UA, Braile DM, Kozak MF, Kozak ACLFBM. Correlação clínico-cirúrgica. Caso 1/2005 - Serviço de Cirurgia Cardíaca Pediátrica - Hospital de Base da Faculdade Estadual de Medicina de São José do Rio Preto. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2005;20(1):94-5. Visualizar artigo