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ARTIGO ORIGINAL

Prevalência e fatores de risco para insuficiência renal aguda no pós-operatório de revascularização do miocárdio

Dyego José de Araújo BritoI; Vinicius José da Silva NinaII; Rachel Vilela de Abreu Haickel NinaIII; José Albuquerque de Figueiredo NetoIV; Maria Inês Gomes de OliveiraV; João Victor Leal SalgadoVI; Joyce Santos LagesVII; Natalino Salgado FilhoVIII

DOI: 10.1590/S0102-76382009000400007

RESUMO

Objetivo: Determinar a prevalência, fatores predisponentes e o desfecho clínico dos pacientes submetidos a cirurgia de revascularização do miocárdio que apresentaram insuficiência renal aguda (IRA). Métodos: Estudo do tipo coorte prospectivo, a partir dos prontuários de 186 indivíduos submetidos a cirurgia, no período de janeiro de 2003 a junho de 2006. As informações foram inseridas em um banco de dados e analisadas pelo software STATA 9.0. Resultados: A prevalência de IRA foi 30,6% (57/186), sendo que 7% (4/57) necessitaram de diálise. A idade média dos pacientes que evoluíram com IRA e sem IRA foi 62,8 ± 9,4 anos e de 61,3 ± 8,8 anos, respectivamente (P=NS). Na análise univariada, estiveram relaciona dos com IRA: tempo de CEC > 115 min (P=0,011) e tempo de pinçamento da aorta > 85 min (P=0,044). No pós-operatório, a necessidade de balão intra-aórtico (P=0,049), tempo de ventilação mecânica > 24h (P=0,006), permanência da UTI > três dias (P<0,0001), bradicardia (P=0,002), hipotensão (P=0,045), arritmia (P=0,005) e uso de inotrópicos (P= 0,0001) foram superiores no grupo com IRA. Na análise multivariada, apenas tempo de internação na UTI > três dias apresentou correlação com IRA (P = 0,018). A taxa de mortalidade nos pacientes com e sem IRA foi 8,8% (cinco casos) e 0,8% (um caso), respectivamente (P=0,016), atingindo 50% (2/4) entre os que necessitaram de diálise. Conclusão: A IRA foi uma complicação pós-operatória frequente e grave associada à maior mortalidade e permanência na UTI, cujos fatores de risco observados foram: tempo prolongado de CEC e anoxia, ventilação mecânica > 24h e instabilidade hemodinâmica.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To determine the prevalence, risk factors, and the clinical outcome of patients undergone coronary artery bypass grafting who progressed with Acute Renal Failure (ARF). METHODS: A retrospective cohort prospective study was performed from data of 186 patients undergone surgery from January 2003 through June 2006. The stored data were analyzed using the software STATA 9.0. RESULTS: The prevalence of ARF was of 30.6% (57/186). In 7.0% (4/57) dialysis therapy was needed. The mean age of patients with and without ARF progression was 62.8 (±9.4) years and 61.3 (±8.8) years respectively (P=NS). CPB time >115 min (p= 0.011) and cross-clamp time >85 min (p=0.044) were related to ARF by the univariate analysis. The need for intra-aortic balloon (P= 0.049), mechanical ventilation >24h (P = 0.006), Intensive Care Unit (ICU) stay > three days (P< 0.0001), bradycardia (P= 0.002), hypotension (P= 0.045), arrhythmia (P=0.005) and inotropic infusion (P= 0.0001) were higher in the ARF group. Only the ICU stay longer > 3 days showed statistical correlation with ARF by the multivariate analysis (P=0.018). The mortality rate with and without ARF was 8.8% (five cases) and 0.8% (one case) respectively (P=0.016), but it reached 50% (2/4) in dialytic patients. CONCLUSION: ARF was a frequent and severe postoperative complication associated with higher mortality and longer ICU stay, which presented as risk factors: longer CPB and cross-clamp times, mechanical ventilation > 24h and hemodynamic instability
INTRODUÇÃO

A insuficiência renal aguda (IRA) está entre as mais sérias e frequentes complicações observadas no pósoperatório de cirurgia cardíaca, com prevalência variando entre 1%, nos pacientes sem alteração renal prévia, e 16% a 20%, entre aqueles com história de alguma disfunção renal [1]. A necessidade de terapia dialítica é observada em até 30,6% dos casos [2,3].

Eventos multifatoriais (pré, intra e pós-operatórios) podem determinar o aparecimento de IRA pós-cirurgia cardíaca, mesmo não ocorrendo disfunção cardiovascular ou nefrotoxicidade nestes pacientes [4]. Em nosso meio, Palomba et al. [5] identificaram que a soma de fatores préoperatórios (idade > 65 anos, creatinina > 1,2 mg/dL, glicemia capilar > 140 mg/dL, insuficiência cardíaca classe funcional > II e cirurgia combinada), intra-operatórios (tempo de circulação extracorpórea > 120 minutos) e pósoperatórios (baixo débito cardíaco, pressão venosa central > 14 cmH2O) podem promover a ocorrência de IRA.

Em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca, observase frequente depleção de volume (em virtude do sangramento intra e pós-operatório) e perda de líquido para o terceiro espaço (decorrente da resposta inflamatória sistêmica), o que acaba por comprometer a perfusão renal, reduzindo a taxa de filtração glomerular [4]. No estudo realizado por de Moraes Lobo et al. [6] foi observado que os pacientes com redução da taxa de filtração glomerular, após cirurgia cardíaca, necessitaram de maior infusão de volume e uso de nitroprussiato de sódio e apresentaram menor fração de excreção do sódio (FENa+), sugerindo que as alterações da função renal observadas resultaram de uma resposta renal apropriada ao baixo volume sanguíneo efetivo.

A presença de insuficiência renal é um importante fator de risco para o aumento no número de óbitos no pósoperatório de cirurgia cardíaca [7]. Evidências sugerem que pequenas elevações nos níveis de creatinina sérica, no período pós-operatório, estão associadas com efeitos significativos sobre o risco de morte [8]. Em geral, verificase que a mortalidade entre indivíduos submetidos a cirurgia cardíaca pode chegar a 8% dos casos, entretanto, quando se instala um quadro de IRA no pós-operatório desses pacientes, há aumento exponencial no risco de morte, ultrapassando os 60% dos casos [9].

Dessa forma, é necessário fazer a identificação dos fatores relacionados ao maior risco de evolução para IRA no período pós-cirúrgico, para que medidas preventivas sejam adotadas, reduzindo a prevalência do evento, por meio da elaboração de condutas clínicas (pré e póscirúrgicas) e terapêuticas mais eficazes, contribuindo para a redução da morbidade e da mortalidade entre os pacientes. O presente estudo teve por objetivo determinar a prevalência, os fatores predisponentes e o desfecho clínico dos pacientes submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio que evoluíram com IRA.


MÉTODOS

Tipo de estudo


Foi realizado um estudo prospectivo, com dados colhidos retrospectivamente, a partir dos dados coletados nos prontuários de 186 pacientes submetidos a cirurgia de revascularização do miocárdio em nossa Instituição.

Amostra

No período de janeiro de 2003 a junho de 2006, 406 pacientes foram submetidos a cirurgia de revascularização do miocárdio, sendo que destes 186 foram incluídos no estudo. Os critérios para não-inclusão dos demais pacientes foram: 1 - idade inferior a 40 anos; 2 - revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea; 3 - óbito nas primeiras 24 horas após a cirurgia; 4 - prontuários sem informação do valor da creatinina pré-operatória (exceto nos casos de pacientes que realizaram diálise no pósoperatório) ou do tempo de circulação extracorpórea; e 5 - pacientes com taxa de filtração glomerular < 15 mL/min.

Coleta de dados

A partir da relação dos indivíduos submetidos à intervenção cirúrgica, foram selecionados os prontuários dos pacientes que atenderam aos critérios de inclusão no estudo. Posteriormente, foram coletadas as informações sobre os dados de identificação, exames laboratoriais, apresentação clínica, monitorização e terapêutica utilizada.

Os dados obtidos foram referentes ao período préoperatório e ao seguimento pós-cirúrgico na UTI, caracterizando-se seis momentos, a saber:

  • T0: correspondeu ao período pré-operatório, anterior à indução anestésica;
  • T1: da admissão do paciente na UTI até as 6h59min da manhã do dia seguinte;
  • T2: com início às 7h do 1º dia pós-operatório até as 6h59min do dia seguinte ou horário do óbito do paciente (se ocorrido após 24 horas do término do procedimento);
  • T3: com início às 7h do 2º dia pós-operatório indo até as 6h59min do dia seguinte ou horário da alta da UTI ou óbito do paciente;
  • T4: com início às 7h do 3º dia pós-operatório até as 6h59min do dia seguinte ou horário da alta da UTI ou óbito do paciente;
  • Alta UTI

    Variáveis

    Foram abordadas as seguintes variáveis no presente estudo:

    Dados clínicos

  • Idade: em anos, apresentada na forma de média ± desvio padrão (DP) e faixa etária;
  • Gênero: masculino e feminino;
  • Peso: em kg, para cálculo de estimativa da taxa de filtração glomerular e diurese diária;
  • Antecedentes pessoais, conforme descritos em prontuário: diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica, taxa de filtração glomerular entre 15-59 mL/min, cirurgia cardíaca prévia, infarto agudo do miocárdio ou angina pectoris, acidente vascular cerebral, entre outros;
  • Doença de base.


  • Exames complementares

  • Creatinina sérica (CrS): avaliar função renal prévia e seguimento diário pós-operatório até a alta da UTI. Valor de referência: 0,5 a 1,3 mg/dL;
  • Uréia: valores pré-operatórios e seguimento diário pós-operatório até T4. Valor de referência: 30 a 40 mg/dL;
  • Depuração de creatinina (DepCr): estimada por meio da fórmula de Cockcroft-Gault [10] para classificar a função renal pré-operatória, considerando portadores de insuficiência renal moderada ou importante os pacientes com taxa de filtração glomerular entre 15-59mL/min [11].


  • Dados cirúrgicos

  • Número de procedimentos cirúrgicos realizados, duração da circulação extracorpórea (CEC), tempo de pinçamento da aorta (TCA) e total de anastomoses.


  • Dados de monitorização pós-operatória

  • Pressão Arterial Média: obtida pela média aritmética das maiores e menores aferições da pressão arterial registradas em cada dia;
  • Diurese: apresentada sob a forma de mL/kg/dia, definindo-se oligúria quando o valor for inferior a 1 mL/kg/dia;
  • Tempo de ventilação mecânica: superior a 24 horas;
  • Necessidade de uso do balão intra-aórtico (BIA);
  • Tempo de permanência na UTI;
  • Intercorrências: sangramento, hipotensão (pressão arterial média < 65 mmHg), bradicardia (freqüência cardíaca < 60 bpm), reoperação, arritmia cardíaca e acidente vascular cerebral (AVC);
  • Necessidade de terapia dialítica;
  • Uso de drogas inotrópicas: dopamina ou dobutamina, a partir do 2º dia pós-operatório (correspondendo ao T3);
  • Ocorrência de óbito.


  • Critérios para definição de IRA

    Foram considerados portadores de IRA no pósoperatório, aqueles pacientes que apresentaram [4]:

    1) aumento de 50% da creatinina no pós-operatório, com valor basal > 1,3mg/dL pré-operatório;
    2) incremento de 0,5mg/dL de creatinina entre aqueles com valor pré-operatório < 1,3 mg/dL; ou
    3) necessidade de tratamento dialítico no pós-operatório.

    Para o cálculo da prevalência de IRA dialítica, consideraram-se apenas os pacientes que realizaram diálise durante a internação na UTI, excluindo-se aqueles que necessitaram da terapia dialítica após a alta dessa Unidade.

    Aspectos éticos

    O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (Protocolo Nº: 33104-0372/2007), conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde 196/96 para pesquisa envolvendo seres humanos.

    Análise estatística

    Primeiramente, foi realizada análise descritiva das variáveis estudadas. As variáveis qualitativas estão apresentadas por meio de frequências e porcentagens, e as quantitativas por médias e desvio padrão.

    Para comparação das variáveis quantitativas foi utilizado o teste t-Student bilateral para amostras independentes e para as qualitativas os testes qui-quadrado, quando aplicável, e exato de Fisher. A normalidade das variáveis quantitativas foi analisada pelo teste Shapiro Wilk.

    Para identificação dos fatores associados com IRA no pós-operatório, foi realizada a análise univariada por meio do modelo de regressão logística.

    Para se estabelecer a associação conjunta dos fatores estudados com IRA, utilizou-se o modelo de regressão logística multivariada. As variáveis que apresentaram P menor do que 0,05, na análise univariada, foram consideradas no modelo de regressão de logística multivariada. A seleção das variáveis foi realizada pelo método passo a passo (stepwise) por eliminação. Apenas as variáveis com P menor do que 0,05 permaneceram no modelo final. Também foram estimados os odds ratios (OR) e seus respectivos intervalos de confiança de 95%. Os dados foram analisados no programa estatístico STATA 9.0.


    RESULTADOS

    A média de idade dos pacientes foi de 61,7 ± 8,9 anos, sendo que 61,8% tinham idade igual ou superior a 60 anos. A maioria pertencia ao gênero masculino (109 - 58,6%).

    A prevalência de IRA no período pós-operatório foi de 30,6% (57/186), sendo que apenas 7% (4/57) necessitaram de terapia dialítica.

    Do total de pacientes, 27 (15,1%) apresentaram creatinina sérica pré-operatória superior a 1,3mg/dL. A taxa de filtração glomerular revelou que 80 (43%) indivíduos apresentavam depuração de creatinina inferior a 60 mL/min.

    No que se refere aos antecedentes mórbidos pessoais, a maioria dos pacientes apresentava história de infarto agudo do miocárdio ou angina pectoris (133 - 71,5%); hipertensão arterial sistêmica (124 - 66,7%), e diabetes mellitus (55 - 29,6%). Apenas 5 (2,7%) pacientes haviam sido submetidos a cirurgia cardíaca prévia.

    A maioria dos pacientes (163 - 87,6%) foi submetida apenas a cirurgia de revascularização do miocárdio, enquanto que os demais tiveram revascularização associada a correção valvar (5,9%), aneurismectomia de ventrículo esquerdo (4,9%) ou correção de cardiopatia congênita (1,6%).

    A média de idade dos pacientes que apresentaram IRA foi de 62,8 ± 9,4 anos, sendo esta de 61,3 ± 8,8 anos no grupo sem IRA, com P = 0,293.

    Na análise univariada das variáveis pré-operatórias estudadas (idade, sexo, creatinina sérica, antecedentes de diabetes, hipertensão, infarto/angina e cirurgia cardíaca prévia), comparando-se os grupos de pacientes com e sem IRA, não foi observada associação estatística destas informações coletadas com o evento de insuficiência renal no pós-operatório.

    O tempo de circulação extracorpórea e o tempo de pinçamento da aorta foram os fatores de risco intraoperatórios associados à IRA, conforme apresentado na Tabela 1.




    A evolução da creatinina sérica no pós-operatório revelou que os valores foram mais elevados no grupo que desenvolveu IRA, sendo observada diferença estatisticamente significante no intervalo T1 a T4, quando comparado ao grupo que não apresentou IRA (Tabela 2).




    Em 149 prontuários analisados havia informação sobre o valor da creatinina sérica na alta do paciente da UTI, sendo 1,61 ± 1,10 mg/dL a média verificada no grupo IRA e 1,05 ± 0,41 mg/dL no grupo sem IRA, com P = 0,0004.

    Em relação à monitorização pós-operatória, observouse que a média da pressão arterial média no intervalo T1-T4 foi praticamente igual nos dois grupos, sendo 93,5 ± 10,9 mmHg no grupo IRA e 93,9 ± 10,2 mmHg entre os pacientes sem IRA, com P =0,792. A média da diurese também foi semelhante entre os pacientes com e sem IRA, verificando-se, respectivamente 1,98 ± 0,97 mL/kg/h e 2,06 ± 0,81 mL/kg/h, com P =0,561. As variáveis qualitativas referentes à monitorização pós-operatória encontram-se descritas na Tabela 3.




    As principais intercorrências apresentadas no período pósoperatório encontram-se descritas na Tabela 4. Chama-se atenção para o fato de hipotensão, bradicardia e arritmia terem apresentado relação estatística com a ocorrência de IRA.




    Após a análise univariada, construiu-se o modelo logístico multivariado, o qual incluiu apenas as variáveis que foram estatisticamente significantes (P <0,05). Os dados da análise multivariada são apresentados na Tabela 5.




    A taxa de mortalidade encontrada no estudo foi de 3,2% (6/186). O número de óbitos entre pacientes com e sem IRA foi 5 (8,8%) e 1 (0,8%), respectivamente, com P = 0,016 (OR= 12,3; IC 95% 1,40 - 107,91). Entre os pacientes que necessitaram de diálise, a mortalidade foi de 50,0% (2/4), e entre os pacientes que não utilizaram terapia dialítica foi de 5,7% (3/53), com P = 0,035 (OR= 16,7; IC 95% 1,70 - 162,96).


    DISCUSSÃO

    Estudos como os desenvolvidos por Yeboah et al. [12] e Abel et al. [13], abordando a relação entre cirurgia cardíaca e IRA, vêm sendo publicados há mais de 30 anos. O interesse no tema reside no fato de a IRA ser uma frequente complicação relacionada a procedimentos cirúrgicos, em especial as cirurgias cardiovasculares, estando relacionada ao aumento da morbidade e da mortalidade no pós-operatório [14].

    A prevalência de IRA encontrada no nosso trabalho foi de 30,6%, próxima à descrita por Kochi et al. [15], com 34,0%, cujo estudo envolvia 150 pacientes. Outros estudos, como os de Tuttle et al. [16] e Yehia et al. [3] apresentaram prevalências superiores as nossas (41,3% e 42,0%, respectivamente). Já nos trabalhos de Santos et al. [2], Chertow et al. [9], Stallwood et al. [17] e Conlon et al. [18], as taxas de IRA foram 16,1%, 7,9%, 2,4% e 1,1%, respectivamente, bem inferiores às descritas em nosso grupo de pacientes. Tais diferenças podem ser explicadas pelos diversos critérios para a definição de IRA pós-cirurgia cardíaca empregados pelos autores.

    O emprego de terapia dialítica é um dos critérios utilizados para definir IRA pós-cirurgia cardíaca [2,18,19]. A necessidade de diálise é encontrada em 0,7% a 30,6% dos pacientes que desenvolvem IRA nas diferentes publicações [2,3]. Em raras situações, como no trabalho publicado por Tuttle et al. [16], nenhum paciente com IRA necessitou de diálise. Nosso trabalho identificou 7% de IRA dialítica, não sendo observados fatores de risco para o evento.

    A maioria dos trabalhos aponta a presença de função renal prévia comprometida como sendo um dos fatores relacionados com a IRA no pós-operatório de cirurgia cardíaca [18]. O trabalho de Walter et al. [20] apontou a depuração de creatinina, estimada pela fórmula de Cockcroft- Gault, como sendo um indicador mais fidedigno, quando comparado ao valor da creatinina sérica, para determinar o risco de evolução desfavorável pós-cirurgia cardíaca. No nosso estudo, assim como no desenvolvido por Lobo [21], não houve relação entre a depuração de creatinina préoperatória e a pior evolução da função renal pós-operatória.

    Outras variáveis pré-operatórias, tais como idade avançada, diabetes mellitus, cirurgia cardíaca prévia e hipertensão arterial, que classicamente são descritas como fatores de risco para IRA em outras publicações, não estiveram relacionadas com a piora da função renal entre os pacientes abordados neste estudo, talvez pelo número de indivíduos aqui estudados ter sido inferior ao de outros trabalhos [2,17,18,22].

    Dentre as variáveis operatórias investigadas, duas estiveram estatisticamente relacionadas com o risco de desenvolvimento de IRA. A média do tempo de circulação extracorpórea (CEC) e do tempo de pinçamento da aorta foram superiores no grupo com IRA (P < 0,05). No estudo de Regner et al. [19], que também avaliou esses dois parâmetros, apenas a média do tempo de CEC apresentou relação de significância com a queda abrupta da função renal, ao contrário do trabalho de Tuttle et al. [16], no qual as duas variáveis foram estatisticamente significantes para evolução de IRA no pósoperatório, apresentando P <0,0001.

    As alterações impostas pelo uso da CEC incluem o contato com superfícies não endoteliais, a exclusão do fluxo pulmonar, a presença de fluxo contínuo minimamente pulsátil ou não pulsátil e o desencadeamento de resposta endócrino-metabólica proporcional a uma cirurgia de grande porte, todas estas culminando em uma resposta inflamatória não passível de controle externo [23]. O impacto positivo da ausência de CEC sobre a função renal no pós-operatório de cirurgia cardíaca pode ser observado no estudo de Milani et al. [24], no qual apenas 0,2% dos pacientes desenvolveram IRA, valor inferior ao encontrado nos estudos em que a CEC foi empregada [25,26]. Em outro trabalho, desenvolvido por Lima et al. [27], avaliando pacientes octogenários submetidos à revascularização do miocárdio, a presença de IRA foi de 19,2% nos pacientes operados com CEC e nula nos pacientes sem CEC.

    Em relação ao seguimento pós-operatório, observou-se que no grupo com IRA a média da creatinina sérica foi mais elevada no intervalo T1 a T4 e no momento da alta da UTI. No estudo de Kochi et al. [15], a avaliação do valor médio da creatinina sérica, após 24 e 48h da cirurgia, também revelou valores mais elevados no grupo com IRA (P < 0,0001). Segundo Ryckwaert et al. [28], mínimas alterações nos valores da creatinina no período pós-operatório não são eventos raros e apresentam impacto significativo no seguimento dos pacientes, com decréscimo da sobrevida.

    Vários estudos apontam a relação entre IRA e tempo de internação hospitalar. Neste estudo, foi avaliado apenas o período de internação na UTI, sendo que a permanência por mais de três dias foi a única variável que, após a análise multivariada, mostrou associação com IRA no período pós-operatório. O estudo de Ryckwaert et al. [28] também apontou relação entre tempo prolongado de internação em UTI e insuficiência renal pós-operatória.

    O tempo médio de ventilação mecânica superior a 24 horas foi maior no grupo IRA quando comparado ao grupo sem IRA (31,6% vs. 13,2%, respectivamente, com P = 0,006). O nosso resultado esteve de acordo com o verificado pelo estudo de Anderson et al. [29], no qual a necessidade de ventilação mecânica por mais de 24 horas foi superior entre os pacientes com pior evolução da função renal. Vieira et al. [30], avaliando 140 pacientes admitidos na UTI de um hospital oncológico, observaram que a ocorrência de IRA determinou não apenas maior tempo de ventilação mecânica, bem como foi necessário maior período de tempo para promover a retirada da ventilação mecânica.

    Dois parâmetros que, segundo Santos et al. [2], podem indiretamente avaliar a performance cardíaca estiveram associados, em nosso estudo, ao desenvolvimento de IRA no pós-operatório. A necessidade de balão intra-aórtico e o uso de drogas inotrópicas (dopamina ou dobutamina), a partir do período T3, foram superiores entre os pacientes com IRA.

    Dentre as intercorrências pós-operatórias investigadas, bradicardia, hipotensão e arritmia estiveram relacionadas com a piora da função renal dos pacientes. O comprometimento da função cardíaca, gerando uma situação de baixo débito, e consequentemente um quadro de hipoperfusão sistêmica, pode precipitar a IRA pré-renal, que se não for prontamente corrigida, evolui para IRA intrínseca e até mesmo necrose cortical, situação que decreta um quadro irreversível de perda da função renal [14].

    A IRA é considerada um fator de risco independente para o óbito no pós-operatório de cirurgia cardíaca. A mortalidade relatada na literatura varia de 14,5% a 63,7% [2,9,31,32]. Em nosso trabalho, a mortalidade entre pacientes com IRA foi de apenas 8,8%, inferior ao encontrado por outros autores. Isto pode ser explicado, em parte, pelo fato de os procedimentos cirúrgicos incluídos neste estudo terem sido todos eletivos, estando os pacientes em melhores condições clínicas pré-operatórias.


    CONCLUSÕES

    1 - O tempo de circulação extracorpórea (>115min), tempo de pinçamento da aorta (>85 min), necessidade de balão intra-aórtico, ventilação mecânica por mais de 24 horas, bradicardia, hipotensão, arritmia e a necessidade de drogas inotrópicas foram considerados fatores de risco para IRA;

    2 - A presença de insuficiência renal esteve relacionada com pior desfecho pós-operatório, caracterizado pelo maior tempo de internação na Unidade de Terapia e Intensiva e maior mortalidade.


    REFERÊNCIAS

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    Article receive on quinta-feira, 2 de outubro de 2008

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